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Página de 1890 da Revista Illustrada ironizava o abastecimento da cidade: Zé Povinho implora por água para beber e tomar banho. Apontando para as lágrimas, o ministro retruca: “Querem mais água para desperdiçar assim?” (Crédito: Angelo Agostini/Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro)

A cidade do Rio de Janeiro recebeu, historicamente, algumas denominações simbólicas, que qualificavam o seu papel de forte conteúdo político: cabeça do Império, vitrine da nação republicana e caixa de ressonância das questões brasileiras. Depois da República proclamada, da Constituição promulgada em 1891 e da Lei Orgânica do ano seguinte, inúmeros daqueles homens que construíram as novas instituições interrogavam-se sobre questões ainda sem respostas: a era inaugurada seria realmente a de um tempo moderno, de progresso para o país? E que lugar a cidade, como Distrito Federal, ocuparia no quadro federativo nacional?

O Rio, antes Corte e então Distrito Federal, “permanecia sendo o mesmo (...) em seu traçado e fragmentado em seu tecido social”, no dizer da historiadora Margarida de Souza Neves. Cresceu tomando formato, seguindo a ideia de mostrar ao país e ao mundo que a república efetivamente trouxe os tais tempos novos. A cidade assumiu uma importante função simbólica frente ao conjunto da nação. Foi neutralizada politicamente por meio da Lei Orgânica, mas, enquanto capital da República, precisou traduzir-se como vitrine do Brasil, refletindo sua modernização. Em outras palavras: transformar toda a cidade em um cartão-postal era atestar, dando visibilidade por meio desse espaço urbano como capital do progresso, o retrato da nova ordem estabelecida.

Na tentativa de conferir novos significados à capital federal, as intervenções urbanas que aconteceram durante a administração do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) continham um inegável caráter político. Era preciso mostrar ao mundo que a instauração do regime republicano trazia, efetivamente, tempos novos para o Brasil, evidenciados no Rio de Janeiro – cada vez mais o palco da cena nacional.

Contudo, a concepção de uma cidade imaginada ou ideal, em meio à pobreza e à desigualdade, gerou diversas tensões e contestações junto aos cariocas, nas primeiras décadas de 1900.

A ideia de reforma não era propriamente novidade. Desde a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, planos de reurbanização já haviam sido pensados. Palavras como obras, higiene, reedificação e demolição dos cortiços nas áreas centrais norteavam alguns dos projetos de mudanças. Nas derradeiras décadas do século XIX, planejar melhor o espaço ocupado pela cidade era um componente presente nos projetos da administração do Império. Foi criada uma Comissão de Melhoramentos para elaborar, em 1875, por recomendação de Pedro II (1825-1891), um conjunto de intervenções urbanas, diante das condições de insalubridade e da ausência de saneamento – dois agentes das epidemias que se espalharam pela cidade entre as décadas de 1850 e 1970.

Entretanto, tais ações apenas foram executadas no início do século XX, sob o regime republicano, e aconteceram entre 1903 e 1906, durante o governo do presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919), quando o engenheiro Francisco Pereira Passos conduziu o ambicioso programa de renovação urbana do Distrito Federal.

Relatos importantes, que antecederam as reformas e as repercussões, podem ser retomados a partir da leitura de importantes obras da literatura brasileira que descrevem a situação daquela época. As crônicas publicadas na imprensa carioca entre 1904 e 1907 por João do Rio – nascido João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921) e conhecido como o repórter da pobreza da cidade – ou o romance naturalista O Cortiço, publicado em 1890, de Aluísio Tancredo Belo Gonçalves de Azevedo (1857-1913), retratam a precariedade da vida dos habitantes da cidade pelos idos do final do século XIX.

As mudanças previam, além das reformas no porto da cidade do Rio de Janeiro, importantes obras de drenagem, canalização de rios, alargamento de ruas e substituição das moradias coletivas – como eram chamados cortiços e estalagens. Com o crescimento da densidade demográfica na cidade, reduziram-se as condições de higiene no interior daquelas moradias populares. A insalubridade crescia, desdobrando-se em periódicas epidemias de cólera, varíola, sarampo e febre amarela, que se espalhavam pelo Distrito Federal.

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Em 16 de novembro de 1902, o jornal carioca Correio da Manhã publicou o manifesto inaugural da posse do presidente eleito, Rodrigues Alves, que prometia obras de saneamento e grandes reformas urbanas na capital federal (Crédito: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro)

Não sem motivo, inúmeros estrangeiros referiam-se à cidade – nada maravilhosa antes das reformas promovidas a partir de 1903 – com o nome de “cidade da morte” ou “porto sujo”. Muitas embarcações chegavam a evitar a Baía de Guanabara, com medo da contaminação.

As realizações conduzidas pelo engenheiro Pereira Passos transformaram o Rio de Janeiro em um imenso canteiro de obras. Alguns versos de Cecília Meireles que levam à reflexão sobre esse fato histórico:

“As coisas acontecidas
Mesmo longe, ficam perto
Para sempre em muitas vidas”.