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Tráfico de moçambicanos: o último suspiro do comércio negreiro
05 Janeiro 2015 | Por Márcia Pimentel
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MOÇAMBIQUE-traficantesarabesO grande tráfico de moçambicanos para o Brasil só ocorreu quando o movimento abolicionista começou a se delinear. Registros históricos indicam a existência, no Rio de Janeiro, de um comércio de escravos vindos da costa oriental da África, desde 1645 mas ele era intermitente e representava uma parcela diminuta dos cerca de 2,5 milhões de outros escravos bantos e nagôs, que chegaram ao país até o início dos anos 1800. Essa realidade começou a mudar depois que a Inglaterra passou a exercer forte pressão internacional para extinguir o comércio negreiro no Atlântico, impondo tratados e leis que coibiam essa prática. Para fugir da vigilância britânica e das consequentes sanções legais, os comerciantes de escravos passaram a buscar novas rotas e portos mais remotos.

Foi nesse contexto que o tráfico de negros oriundos da costa índica africana atingiu grandes proporções em nosso país, na primeira metade do século XIX. Para se ter uma ideia do aumento, entre 1795 e 1810 – data em que foi assinado o primeiro ato formal de Portugal contra o sistema escravista – apenas 15 navios carregados com cativos moçambicanos haviam aportado no Rio. Nos 20 anos subsequentes, esse número aumentou para 239. E, a partir de 1831 – data em que todo o tráfico passou a ser enquadrado como pirataria, conforme convenção ratificada por dom Pedro I e a Coroa Inglesa, em 1827 –, se verificou uma corrida desenfreada pela compra de africanos.

Isso significa que a maioria dos negros oriundos de Moçambique foi mantida ilegalmente em cativeiro, perante as leis nacionais e internacionais. Aliás, não apenas eles, mas todos os escravos desembarcados depois de 1831, pois, apesar da vigilância inglesa na costa atlântica, as estratégias utilizadas para driblá-la conseguiram estender, por pelo menos mais duas décadas, o tráfico negreiro entre Brasil e Angola. “A escravidão do Segundo Reinado se manteve sob a cobertura do crime”, acusa Luiz Felipe de Alencastro, historiador e professor emérito da Universidade de Paris-Sorbonne.

Os negros orientais

MOÇAMBIQUE-rinocerontedeouroQuando Vasco da Gama descobriu o caminho para as Índias, as diversas etnias fixadas em Moçambique (todas do grupo banto) mantinham um intenso comércio com os árabes de Omã, que haviam invadido a região no século IX e ocupado importantes áreas portuárias, como a da cidade de Sofala. O resultado desse contato foi não só o estabelecimento de uma cultura africana islamizada, mas também com influências hindus, já que os árabes trocavam inúmeras mercadorias adquiridas na Índia – tecidos, miçangas e ágata – pelo ouro, marfim, tartaruga, cera e outros produtos fornecidos pelos moçambicanos, além de escravos.

Segundo Corcino Medeiros dos Santos, professor da pós-graduação em História da Universidade de Brasília (UnB), os portugueses perceberam, de imediato, a importância estratégica de Moçambique para a articulação do comércio no Oceano Índico, já que aquela era a principal região de produção aurífera do Oriente. Logo estabeleceram feitorias e, por algumas décadas, tiveram que lutar contra o bloqueio dos árabes para MOÇAMBIQUE-INDIASterem o controle do comércio de ouro. Só conseguiram isso na década de 1530, quando adentraram o território e se aproveitaram de lutas internas para conquistar a aliança do Reino dos Monomotapas, onde ficavam as minas. O marfim e o tráfico de escravos só viriam despertar o interesse dos lusitanos nos séculos subsequentes.

Quanto ao comércio negreiro moçambicano, ele só se tornou efetivamente importante para os portugueses a partir de 1750, quando o marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal, decidiu se aproveitar da expansão do tráfico para a França, que precisava de mão de obra escrava para expandir a produção açucareira em suas ilhas do Índico. Alguns brasileiros se estabeleceram em Moçambique, nessa época, explorando o comércio de cativos no Oriente. Até então, o tráfico para cá não era rendoso pelo fato de a viagem ser muito mais longa e demorada que a da costa atlântica. Essa situação mudou, no entanto, com as medidas antiescravagistas promovidas pelos britânicos. Na primeira metade do século XIX, um africano oriental passou a custar um décimo de um ocidental, de forma que, em 1830, 60% dos navios negreiros que partiam dos portos de Moçambique tinham o Rio de Janeiro como destino.

Conspirações e movimentos libertários

Com a independência do Brasil, os ideais de liberdade começaram a chegar ao território moçambicano, via navios negreiros. Tanto na Ilha de Moçambique como na capitania de Rios de Sena, surgiram grupos de influência que passaram a defender a secessão da colônia africana em favor dos brasileiros. Tais projetos desapareceram com a ordem do primeiro-ministro português para o governador-geral: “Previna-se de qualquer conspiração que trate de unir a província ao governo do Rio de Janeiro”. Pouco depois, em 1829, periódicos daqui também foram impedidos de circular e, em 1836, quando Portugal proibiu a exportação de escravos em suas colônias, novos movimentos passaram a defender a subordinação de Moçambique ao governo brasileiro.

Segundo José Luis de Oliveira Cabaço, sociólogo e antropólogo moçambicano, a mensagem libertária que o Brasil projetava de si, desde a Independência, não se desvaneceu na imaginação dos setores urbanos da colônia portuguesa e voltou a ganhar ímpeto a partir dos anos 1930, com o surgimento da literatura regionalista brasileira, rica em narrativas sobre a marginalização racial. “Nesses livros, os negros eram personagens e não meros adereços de cena”, diz ele, que ainda afirma que tais personagens e histórias foram fundamentais para a solidificação da utopia de libertação de Moçambique do jugo colonial.

Heranças culturais

Para o historiador Manolo Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o legado dos moçambicanos à cultura carioca e brasileira é muito mais sutil que o dos escravos da costa ocidental africana. Isso porque o menor tempo de cativeiro, comparado àquele dos demais grupos étnicos, imprimiu uma dinâmica própria. “Quanto mais recentes, menores as chances de as comunidades se reproduzirem e MOÇAMBIQUE-artesanato3fincarem raízes”, avalia.

Benigna Zimba, do Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, a capital de Moçambique, está de acordo com essa interpretação. “A integração de nós, moçambicanos, com o Brasil foi problemática, porque trouxemos uma cultura que, de certa forma, teve que se adaptar à cultura de outros escravos que já estavam integrados”, disse ela em uma entrevista ao site da BBC. Ainda assim, a historiadora afirma reconhecer traços das etnias da África Oriental em nosso país, como o uso de miçangas em roupas e adereços. Segundo Benigna, os brasileiros também exerceram influência na cultura de lá, a exemplo do carnaval, que é comemorado nas regiões que mais exportaram escravos para o Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil.

Alguns pesquisadores, contudo, desconfiam que a influência das etnias de Moçambique na cultura afro-brasileira pode ser maior do que parece, já que seu estudo, ao longo da historiografia, vem sendo negligenciado, quando comparado ao dos grupos étnicos da costa ocidental. Aliás, uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que analisou o DNA de negros, concluiu que a presença genética dos moçambicanos é bem maior do que se esperava, de forma que ainda há muita coisa a ser esclarecida sobre o assunto.

 
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