Nossa memória é bem mais importante do que costumamos supor. Por exemplo, para Schopenhauer, autor da obra O Mundo Como Vontade e Como Representação, a loucura não deveria ser atribuída a uma perturbação mental, mas a uma disfunção justamente da memória. Segundo o filósofo, a fim de evitar rememorar uma grande dor, a vontade da pessoa faria com que ela não fosse mais capaz de ordenar o pensamento. As lacunas deixadas na memória seriam preenchidas, portanto, por conteúdos irreais. As lembranças não estariam subordinadas ao intelecto, mas sim à vontade. Intelecto e vontade são independentes e soberanos, mas quem prevalece no processo psíquico é a vontade.
Memórias são mudanças biológicas, fundamentais para a saúde mental de qualquer pessoa, como explica o médico Marcelo Feijó, professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo, especialista em Transtorno de Estresse Pós-Traumático e coordenador do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove). “A memória de curto prazo, ou de trabalho, é aquela que usamos temporariamente. Mas somente aquilo que é significativo será incorporado à nossa vida. A história de cada pessoa é que se transforma em uma memória de longo prazo. A memória de trabalho e a de longo prazo têm mecanismos biológicos completamente diferentes e se realizam em partes distintas do cérebro.” É graças à memória de trabalho, por exemplo, que um bom garçom não embaralha os pedidos na hora de servir os pratos.
Adiele Corso, coordenadora do Departamento de Neurociências do Instituto da Infância e Adolescência do Paraná (IAD), aprofunda o assunto. “A memória de longo prazo se divide em memória explícita ou declarativa (para fatos e eventos) e memória implícita ou não declarativa (que é inconsciente, aquela memória para procedimentos, como a habilidade para dirigir quando a pessoa já tem este domínio). Uma proteína ligada à consolidação da memória de longo prazo é a Arc (activity-regulated cytoskeletal protein). Ela coordena, dentro dos núcleos dos neurônios, os momentos em que os genes responsáveis por esta memória devem ficar ‘ligados’ ou ‘desligados’.”
A psicóloga entende a memória como crucial para a evolução da espécie humana. “Ela desempenha papel fundamental para nossa qualidade de vida, pois é a condição primordial ao aprendizado. A capacidade de evocar esses conteúdos condiciona nossa adaptação ao mundo, nossos relacionamentos sociais, o planejamento e a tomada de decisões. Quando isso não ocorre de forma satisfatória, afeta diretamente nosso emocional, através de sentimentos de fracasso ao não conseguir realizar algo que depende do nosso esquema de memória, resultando em autoestima rebaixada, sentimentos de inadequação e, algumas vezes, até relacionados à depressão.”
Na opinião de Marcelo Feijó, o esquecimento, por sua vez, também tem um valor inestimável. “Talvez até mais importante do que lembrar. Seria impossível viver de maneira saudável se nos lembrássemos de tudo o que fazemos. Esquecer é, também, elaborar, tocar a vida para frente, e não viver somente do passado.” Segundo o médico, o brasileiro Ivan Izquierdo, da PUC-RS, é um dos principais pesquisadores da memória no mundo.
O processo de esquecimento, no entanto, costuma se alterar com o passar dos anos. “Para uma pessoa idosa, lembrar-se do que fez ou do que disse há poucos minutos pode ser muito mais trabalhoso do que tentar esquecer algo, visto que, com o envelhecimento, ocorre um declínio na memória de curto prazo. Em contrapartida, quando falamos de transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo, é bastante difícil esquecer o estímulo ou a situação geradora do trauma. Esse acontecimento estressor é capaz de gerar uma série de eventos psicológicos e neuropsicológicos associados”, finaliza Adiele.
A memória como patrimônio social
Nos últimos anos, a preservação coletiva da memória tem recebido atenção especial da Rede Municipal de Ensino. Desde 2013, o Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares (Niap) vem realizando o projeto História, Memória e Cultura na Escola. A coordenação é feita por Lourdes Mesquita Gigante, Monica Costa e Priscila Frisone, que também foram as autoras do esboço, em conjunto com as miniequipes que atuaram em um projeto anterior – o Memória Local na Escola, que aconteceu ao longo de 2012, numa parceria com o Museu da Pessoa e com o Instituto Avisa Lá.
A escolha das turmas é feita em conjunto pela equipe gestora da escola, professores regentes envolvidos e o Niap. Entre os objetivos do projeto História, Memória e Cultura na Escola estão não apenas o incremento da aprendizagem – em relação, por exemplo, à leitura e à escrita – mas também o estímulo à integração de cada escola com sua comunidade. Além disso, todos os envolvidos têm a oportunidade de se reconhecer como agentes sociais, ao perceberem a distinção entre história vivida e história narrada, bem como a constatação de que a História considerada oficial é produto de um recorte, feito no tempo e no espaço, e que implica relações de poder.
Atualmente, participam oito escolas municipais: E.M. João Kopke (3ª CRE), E.M. Professor Josué de Castro (4ª CRE), E.M. Zélia Braune (4ª CRE), E.M. Olegário Mariano (5ª CRE), E.M. Quintino Bocaiúva (5ª CRE), E.M. Aracy Muniz Freire (8ª CRE), E.M. Tenente-Coronel PM Eduardo Villaça (8ª CRE) e E.M. Álvaro Alvim (8ª CRE). Elas são acompanhadas individualmente pelo Niap. “Durante o ano de 2013, algumas miniequipes, em colaboração com a equipe gestora, colocaram produções no blog das próprias escolas”, explica Lourdes Gigante. Além dos relatos textuais, o projeto tem gerado desenhos, vídeos, livros artesanais ou digitais, peças teatrais, apresentações de dança, saraus literários, contação de histórias e até exposições nas escolas ou nas CREs.
Nas fases preparatórias estão incluídos: leitura de livros biográficos, exibição de filmes, visita a museus e, em especial, um olhar voltado às histórias do que é significativo para o contexto específico em que estão inseridos – sejam monumentos, bustos, placas ou o patrono da escola. Segundo a coordenadora, os alunos ficam curiosos e, ao mesmo tempo, encantados com as histórias das suas comunidades. “Muitos não tinham conhecimento ou conheciam bem pouco. O que percebemos é que passam a valorizar o patrimônio social. Já as pessoas que foram chamadas a contar histórias se sentem prestigiadas perante a comunidade escolar.” A coleta de histórias orais deste ano ainda está acontecendo. Em breve, novos registros estarão preservados.