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Fora da família, trajetória escolar é mais difícil
24 Julho 2017 | Por Sandra Machado
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O senso comum ainda confunde acolhimento com internação por ato infracional análogo a crime (Fonte: pixabay.com)

Quando vivem em situação de risco ou ameaça, como orfandade, abandono, negligência e maus-tratos, meninos e meninas acabam sendo prejudicados em mais um de seus direitos fundamentais – o direito à educação. Encaminhados aos abrigos, nem sempre as condições encontradas favorecem a manutenção da assiduidade escolar.

De acordo com o mais recente censo do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em 31 de dezembro de 2016 havia 588 crianças e adolescentes, de até 18 anos incompletos, em abrigos no município do Rio, distribuídos em 34 unidades de acolhimento, entre conveniadas e da Prefeitura, além de 11 polos do Programa Família Acolhedora, onde se intervém junto aos responsáveis. O retrato desse levantamento nos mostra uma realidade muito triste, que precisa urgentemente ser modificada.

Em relação à escolaridade, na faixa etária de até 3 anos, a maioria esmagadora (88,76%) não está sendo atendida pelas creches. De 4 a 6 anos, o quadro melhora um pouco, caindo para 39,68% a porcentagem dos que estão fora da pré-escola. Entre 7 e 9 anos, justamente no primeiro segmento do Ensino Fundamental, em que ocorre o processo de alfabetização, o índice cai para 34,72%, mas ainda é bastante elevado. A partir dessa faixa, o total de crianças e adolescentes fora da escola fica em torno de 20%: entre 10 e 12 anos (20,17%), de 13 a 15 anos (22,54%) e 16 a 18 anos (22,33%). Mas, mesmo quando conseguem manter uma frequência mínima às aulas, o rendimento escolar pode ficar prejudicado, como explica a psicóloga Ana Cláudia Albino, que tem vivenciado o dia a dia nos abrigos, nos últimos anos, e conversou com o Portal MultiRio sobre o assunto.

Portal MultiRio – Como acontece a escolarização das crianças residentes em abrigos?

Ana Cláudia Albino – O abrigo é pensado como um espaço provisório e, portanto, com uma perspectiva de acolhimento breve, sendo uma medida reavaliada a cada seis meses. A escolarização representa o acesso a um direito das crianças em situação de vulnerabilidade, mas poucas estão matriculadas quando chegam ao abrigo. Na entrevista inicial, a gente pergunta: por que você está fora da escola? A maioria responde: porque saí do abrigo. A cada vez que fazem reingresso, depois da fase de documentação, elas são encaminhadas para a rede básica de saúde e para a escola, mas nem todas continuam.

PM – A que se devem essas interrupções?

ACA – O critério de transitoriedade é bastante subjetivo. Crianças maiores fazem um movimento para voltar para casa. Sua permanência não é linear; elas fogem das unidades de acolhimento ou têm vínculo com a rua. Existe realmente uma interrupção da rotina escolar, da criança que vai e volta, se evade em ocasião de prova, ou acaba até mesmo perdendo a matrícula na rede pública. Em alguns casos, a partir do rompimento dos vínculos familiares, ela também abre mão da regra de convivência na instituição.

PM – Quem auxilia nas tarefas escolares?

ACA – Caso haja necessidade, uma van garante o traslado até a escola municipal. Há um limite de 20 usuários por unidade de acolhimento, com um educador social para cada 10 crianças, ou para cada 8, caso alguma delas tenha uma necessidade especial. Se houver duas crianças nesta condição, a proporção passa de um educador para cada seis abrigados. Na prática, são quatro grupos com dois educadores, que se revezam em plantões de 12h por 36h, e auxiliam na tarefa escolar. Toda unidade conta, ainda, com uma equipe técnica, formada por um(a) psicólogo(a) e um(a) assistente social, para cada dez acolhidos.

PM - Qual a formação média dos profissionais que trabalham nos abrigos?

ACA – O educador social é um profissional de nível médio e, em geral, quem assume a função são pessoas sem experiência na área. Até porque, no Rio de Janeiro, não existe nenhuma capacitação prévia. Um educador com formação de professor é um diferencial. Ainda assim, as instituições se propõem a criar salas de leitura e salas com computadores, onde, geralmente, são feitas as tarefas escolares.

PM – Existe diferença no rendimento escolar dessas crianças em relação àquelas que vivem com suas famílias?

ACA – O rendimento dessas crianças é muito prejudicado pelas sucessivas entradas e saídas nos abrigos e pelo histórico de evasão escolar. Elas desenvolvem suas próprias estratégias de sobrevivência e têm uma leitura diferenciada do que significa respeito às normas e à convivência dentro da escola. Por sua vez, sob a perspectiva da prática inclusiva, à escola também cabe a contrapartida de se adequar a esses perfis. Lamentavelmente, a aprovação no fim do ano não é uma regra. Além disso, tem a questão da transferência, na qual se busca reconduzir o aluno à sua territorialidade de origem, ao bairro onde morava. Mas é importante lembrar que uma unidade de acolhimento que é protetiva não é semelhante a uma unidade socioeducativa, ou seja: não tem como obrigar à permanência.

PM – Como as escolas recebem os abrigados?

ACA – Geralmente se sabe, de antemão, que a criança vai ser recebida e, mais adiante, vai ser novamente encaminhada para outro lugar. Mas eu já tive uma parceria muito boa com a E.M. Domingos Bebianno, em Inhaúma, que recebeu muito bem um caso excepcional, apesar do período curto.

PM – Quais são os critérios para o encaminhamento aos diferentes abrigos?

ACA – A maioria das crianças e adolescentes é agrupada por gênero e pela faixa etária, o que é uma herança maligna do processo de institucionalização no nosso país. A única exceção são as unidades que se propõem a acolher grupos de irmãos, que não podem ser desfeitos. A maior parte dos acolhidos está, hoje, em instituições conveniadas, de particulares que prestam serviço. Mesmo assim, na faixa dos 8 aos 12 anos e dos 15 aos 17, há poucas vagas. Apenas os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), que tratam da prevenção, e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), que entram em casos de violação de direitos, como o abuso sexual, é que não podem ser terceirizados. Tudo é regulado por um sistema de garantia de direitos que tem um viés judicializado. Para que uma criança fique acolhida em uma determinada casa, existem normas que determinam, por exemplo, quantas camas pode haver em cada quarto, qual o espaço mínimo entre elas, e assim por diante. O Ministério Público Estadual, as Varas da Infância e da Juventude e outros órgãos de garantia de direitos cuidam da fiscalização.

PM – Essa estrutura funciona?

ACA – No caso da Central de Recepção, acredito que a convivência entre crianças com diferentes perfis gera vulnerabilidade. Esses dias, o Conselho Tutelar me encaminhou uma menina de 7 anos, cuja mãe sofre de tuberculose em estágio avançado, o pai é alcoolista e ela havia sido mandada para a casa de uma tia, que não conseguiu ficar com a garota, inclusive por problemas financeiros. Sendo assim, essa criança seria enviada para a mesma unidade de acolhimento que uma adolescente com problemas psiquiátricos sérios que chegou no mesmo dia. Não ia ser nada saudável para ela, tão assustada e triste, que as duas ficassem juntas no mesmo lugar. Fiz alguns pedidos e consegui uma vaga com o perfil da criança.

PM – Pensando no desenvolvimento integral da criança, existem atividades paradidáticas – como ida ao cinema, teatro, exposições, estádios?

ACA – Sim, existem estas atividades, que se estabelecem em parcerias, inclusive por meio do Projeto Circulando, da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH). Nas unidades de acolhimento, propriamente ditas, não. O que ocorre é que algumas instituições, como o Centro Cultural Capoeira Cidadã, em Jacarepaguá, convidam as crianças para participar das suas atividades no contraturno da escola – geralmente, para praticar esportes.

PM – Como começou seu envolvimento com o tema das crianças em abrigos?

ACA – Sou uma profissional que atua neste ramo há sete anos. Trabalho diretamente com os abrigados e também escrevo sobre o assunto, com a supervisão da professora Maria Helena Zamora, da PUC-Rio. Já fui técnica do Programa Família Acolhedora, em Campo Grande, e trabalhei na Unidade de Reinserção Social (URS) Cely Campello, em Jacarepaguá, além de ter sido convidada para a realização de um projeto da Casa Civil, na esfera municipal, entre 2015 e 2016. No momento, atuo na Central de Recepção Taiguara, em Del Castilho, que faz triagem de crianças e adolescentes. Esse equipamento não era previsto pela política de assistência no Rio de Janeiro, mas surgiu pela necessidade de fluxo. Há casos emergenciais, como o de crianças que se perdem dos pais depois de circular no entorno das estações do BRT. Na nossa central, elas fazem cinco refeições por dia, estão provisoriamente acolhidas, mas temos tido dificuldade de conseguir vaga nos abrigos, principalmente no caso de adolescentes. Sou uma amante do tema.

 
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