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A Revolta da Chibata
19 Dezembro 2016 | Por Jeanne Abi-Ramia
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Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1910

Il.mo e Ex.mo Sr. Presidente da República Brasileira
Cumpre-nos comunicar a V. Ex.a, como Chefe da Nação brasileira:
Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais têm sido os causadores da Marinha brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Ex.a faça aos marinheiros brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir à Nação brasileira. Reformar o código imoral e vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda, mandar pôr em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha. Tem V. Ex.a o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada.

Bordo do encouraçado São Paulo, em 22 de novembro de 1910.

Nota: Não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro.

Considerações

A récita, o som do canhão e outras questões

Embarcação Minas Geraes, 1909, em Tyne & Wear Archives & Museums (Fonte: Wikimedia Commons)

Na noite de 22 de novembro de 1910, o presidente Marechal Hermes da Fonseca e as autoridades que compunham o seu ministério assistiam, como parte das comemorações da vitória nas eleições daquele ano, a uma récita da ópera Taunhauser, de Richard Wagner. Enquanto o evento acontecia, ecoou, ao longe, um estrondo originado do encouraçado Minas Gerais então fundeado na Baía de Guanabara. O tiro de canhão partira de uma das embarcações que o Brasil, em 1906, encomendara aos estaleiros ingleses de Newcastle, e que faria parte da chamada “Esquadra Branca”. Naquela época, em tempos de paz era comum que as embarcações fossem pintadas de branco. Hoje, a prática não é mais utilizada, pois essa cor é destinada aos navios hidro-oceanográficos. A aquisição dos novos encouraçados do tipo Dreadnough teve como finalidade modernizar e reaparelhar a Marinha do Brasil da situação em que se encontrava desde a Revolta da Armada (1893).

O Minas Gerais, aguardado com bastante ansiedade, surgiu ao largo da Baía de Guanabara no dia 17 de abril de 1910. Na ocasião, Eduardo das Neves, citado pelo pesquisador Ricardo Cravo Albin como uma “das figuras mais populares de artista do início do século e um dos pioneiros a gravar discos no Brasil”, exaltou a chegada do novo encouraçado em letra e música. A composição, inspirada na canção napolitana Vieni Sul Mar, lançada pela Casa Edson, dizia: Louros triunfais o século nos traz/ Vamos saudar o gigante do mar/ Óh! Minas Gerais. Adiante, a música se tornaria bastante conhecida como Óh! Minas Gerais, sugerindo o estado brasileiro e não mais a embarcação.

No dia 18, o jornal O Paiz informava, em sua primeira página, com visível entusiasmo: “A chegada foi o acontecimento que fez palpitar numa vibrante emoção patriótica toda a alma nacional, porque não foi só o Rio de Janeiro que recebeu nas águas de sua formosa baía o formidável Dreadnought; foi o Brasil inteiro que saudou no vulto agigantado do colosso dos mares sul-americanos o símbolo soberano de sua pujança, a expressão concreta de sua energia da nação”.

Tanta euforia tinha razão de ser. Navios do tipo Dreadnought simbolizavam um tempo que se anunciava repleto de promessas inovadoras e que adequava a Marinha do Brasil à tecnologia atualizada. A indústria de guerra naval chegava a comparar esse tipo de encouraçado a uma fábrica moderna. Veloz, possuía 12 canhões de calibre padronizado, assentados em seis torres giratórias avante e a ré, que significava a possibilidade de disparar contra alvos localizados à proa (frente) ou popa (atrás) do navio. Podia embarcar uma tripulação de aproximadamente mil homens. Historiadores voltados para o tema observam que tal número era significativo, pois no Minas Gerais e no São Paulo concentrava-se um terço das guarnições da Armada brasileira daquela época.

Em fins do século XIX e início do XX, acontecia uma “corrida armamentista internacional”, conforme observa o historiador José Miguel Arias Neto. A Marinha atuando na defesa das águas marítimas e das águas interiores, desde o século XVIII quando em 1736 D. João V criou a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha, necessitava estar apta para responder prontamente a eventuais crises ou emergências.

Se por um lado os ganhos pareciam notórios, existiam pontos que mereciam atenção. O governo brasileiro comprara uma frota moderna e precisava qualificar e capacitar o seu efetivo. As tripulações deveriam conhecer eficientemente os Dreadnoughst: maquinário, telégrafos, couraça de aço, eletricidade, entre outras peculiaridades. Partindo desse objetivo, um número expressivo de marinheiros foi enviado para a Inglaterra a fim de receber treinamento adequado. Contudo, era fundamental ter disponível uma quantidade bem maior de braços para executar as tarefas diárias nas embarcações. Mesmo cada navio possuindo uma “tabela de serviços” organizada pelos oficiais, incluindo manutenção, limpeza, pintura etc., a sobrecarga de afazeres fomentava punições e tensões.

Entretanto, se o governo republicano tomava decisões para modernizar a Marinha, em inúmeros aspectos o país não era diferente se comparado aos derradeiros anos imperiais. O mundo rural permanecia como eixo substancial voltado para as atividades produtivas em latifúndios. O café era sinônimo de riqueza para alguns grupos sociais, como o dos cafeicultores exportadores e o dos banqueiros. Se no espaço das quimeras, da modernidade e das teorias estrangeiras, as mudanças eram pretendidas, os preconceitos e as barreiras, rastros do passado, permaneciam vivos e atuantes.

Entre as quimeras e os rastros do passado

Seguidores de João Cândido, de Augusto Malta (Fonte: Rio de Janeiro 1900-1930, G. Ermakoff Casa Editorial, 2003)

Nas décadas finais do século XIX e nas primeiras do XX, diversas teorias estrangeiras, protegidas pelo guarda-chuva da ciência, criavam explicações, algumas chanceladas pela Biologia, para explicar as diferenças entre os homens – a “raça excludente”. Tais princípios, condicionados por interpretações deterministas. condenavam a mestiçagem, excluíam a cidadania, a igualdade entre os homens e transformavam “hierarquias sociais em dados imutáveis”, pondera a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.

No Brasil de 1910, 22 anos após a Abolição, surgia uma espécie de intimidação social para os “libertos”. A partir do estabelecimento da República e da entrada em vigor “de uma nova ordem social em mudança e que passou a classificar os cidadãos com base em critérios raciais, a instabilidade da posição desses grupos tornou-se evidente, e, ademais tão ameaçadora quanto embaraçosa”, observa Lilia Moritz Schrwarcz. Seguindo as teses europeias, predominava o conceito da sociabilidade distanciada da condição de vida ou do passado das populações descendentes do cativeiro A passagem da sociedade que agia, se entendendo escravista, para outra, em que, hipoteticamente, a produção viria por meio do trabalho remunerado, foi inquietante e cercada de tensões.

Os quase 75% dos marinheiros a bordo dos navios envolvidos na Revolta da Chibata eram predominantemente analfabetos e negros. Representavam as primeiras gerações de filhos e de netos de ex-escravos ou dos nascidos a partir da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871). Gerações que testemunharam as famílias escravizadas, que ouviram narrativas sofridas e que presenciaram as incontáveis barreiras impostas à ascensão econômica e aos direitos civis. A escravidão deixara rastros e estilhaços. Não passara em brancas nuvens e nem adormecera “em plácido repouso”, conforme versejou o poeta Francisco Otaviano. Nessa perspectiva, pesquisadores do assunto consideram que a Revolta da Chibata e João Cândido Felisberto simbolizam esse cenário. O historiador Álvaro Pereira do Nascimento, “insere a Revolta da Chibata na história das primeiras gerações de descendentes de ex-escravos na pós-abolição”.

Em meio a continuidades de toda ordem, as práticas disciplinares impostas pela oficialidade e somadas ao racismo, evidenciavam os dilemas e os conflitos que ocorriam no Brasil na primeira década do século XX. Consoante com o código disciplinar vigente na Marinha, as faltas graves seriam penalizadas com ”25 chibatadas, no mínimo”, quantidade frequentemente ultrapassada.

A partir de 1898, com o estabelecimento da República, essa condenação foi suprimida, porém retomada no ano seguinte, mesmo sendo considerada aviltante já que, além do sofrimento inconteste, deveria ser presenciada por toda a tripulação reunida no convés dos navios.

Naquela época, agudas interpretações responsabilizavam os marinheiros pelos males que ocorriam na Armada. Para aqueles que condenavam o sistema de recrutamento militar forçado, como o primeiro-tenente José Eduardo de Macedo Soares, fazia sentido combater a prática que incorporava “negros raquíticos, mal-encarados com todos os signos deprimentes das mais atrasadas nações africanas (...). Imprevidentes e preguiçosos eles trazem da raça a tara da incapacidade de progredir”.

Vale observar que o recrutamento compulsório permaneceu na memória do povo, relacionado à fuga. Durante o Império, essa arbitrariedade violenta assumia a conotação de uma “caçada humana”. Na ausência de voluntários, predominava o engajamento por coação executado pela força policial. Para os marinheiros, as condições de vida e de trabalho, em geral, não eram nada fáceis. Portanto, era perfeitamente compreensível que o voluntariado fosse raro ou quase inexistente. Nesse cenário, e considerando o imenso território brasileiro, o ditado popular ganha significado óbvio: “Deus é grande, mas o mato é ainda maior”.

Observa o historiador Flávio Henrique Dias Saldanha, que “a população masculina, adulta, livre e em idade produtiva, diante das circunstâncias do encargo militar, simplesmente ‘desaparecia’ seja nas redes de proteção e de privilégios locais, seja nos distantes e ermos sertões do Império. Afinal, (...) o sertão está em toda a parte”. Alguns movimentos populares acontecidos no Brasil, direta ou indiretamente, envolveram o recrutamento forçado. Mesmo o serviço militar sendo visto como “um castigo”, Álvaro Pereira do Nascimento enumera casos em que indivíduos presos como desordeiros escolhiam o alistamento para escapar da cadeia e como atalho “para conquistar suas liberdades”.

Pois partira do encouraçado Minas Gerais, sob o comando e controle dos marinheiros vistos como “imprevidentes e preguiçosos”, o tiro de canhão que avisava às demais tripulações que compunham a frota da Marinha do Brasil, fundeada na Baía de Guanabara, que o navio estava sob o controle dos amotinados. Recebida a senha, as guarnições das embarcações São Paulo, Deodoro e Bahia uniram-se à trama, seguidas, no decorrer do dia, da Floriano, Primeiro de Março e Benjamin Constant.

Um mar de boatos e de intranquilidades espalhou-se pela capital federal, onde ocupava o governo um presidente recentemente eleito: o Marechal Hermes da Fonseca. Iniciava-se a chamada Revolta da Chibata.

Civil? Militar? A campanha de 1910.

A campanha presidencial de 1910, que colocou frente a frente os candidatos Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca e Ruy Barbosa de Oliveira, esteve mergulhada em circunstâncias diferenciadas do que acontecera até então. Pela primeira vez em um pleito dessa natureza, ainda durante a chamada Primeira República, a presença de um candidato civil, Ruy Barbosa, opondo-se a de um militar, Hermes da Fonseca, mobilizou paixões, conforme observam estudiosos dessa matéria. Para o historiador João Felipe Gonçalves, diante dos antecedentes eleitorais em que predominavam alianças oligárquicas, “é espantoso que a campanha de Ruy Barbosa pela presidência da República tenha se tornado uma das grandes páginas da construção da democracia no Brasil, e um dos eventos mais importantes do combate ao domínio oligárquico na Primeira República”.

Dentro do cenário político eleitoral, essa campanha, batizada de “civilista”, que se contrapunha ao lado chamado de “hermista”, trazia um postulante que fora senador e que, à época, presidia a Academia Brasileira de Letras. Além disso, em 1907, recebera a designação de “Águia” por sua atuação na Conferência de Paz de Haia – encontro que elaborou um dos mais importantes tratados internacionais sobre crimes de guerra. Para o Brasil, a presença de um representante na cidade holandesa tem “um significado especial, pois assinala o momento inaugural da presença do país nos grandes foros internacionais”, considera o jurista Celso Lafer.

Durante a campanha, Ruy Barbosa encampava crenças e convicções que expressava em discursos acalorados, como no de outubro de 1909: “O movimento persiste. O movimento cresce. O movimento se inflama. (...) Todo o Brasil vivo se levanta. A Nação está de pé em marcha. É o batismo do povo na Democracia. É o renascimento da nossa nacionalidade. É o futuro livre que se começa a descortinar”.

Pelos idos de 1909 e 1910, aqueles que circulavam pelas praças e ruas das principais cidades brasileiras, como as localizadas em São Paulo, em Minas Gerais ou na Bahia, percebiam que uma eleição presidencial estava acontecendo por meio dos comícios que, de acordo com a expressão da época, eram conhecidos como meetings. Muitos populares frequentavam esses encontros ouvindo atentamente os discursos, especialmente aqueles que tinham direito ao voto e que, à época, eram poucos. No Rio de Janeiro, os meetings aconteciam costumeiramente no período da tarde no Largo de São Francisco, no centro da cidade.

A imprensa, por sua vez, desempenhou um papel que ia além da divulgação dos acontecimentos. Apoiando ou criticando, impulsionava as campanhas singularmente. Nas sedes dos periódicos, aconteciam encontros políticos. Muitas vezes, esses locais podiam ser escolhidos para encerrar as manifestações iniciadas em outros pontos das cidades. Os jornalistas postados nas sacadas das redações, transformadas em palanques, falavam ao público urbano aglomerado nas calçadas. Também, organizavam eventos e acompanhavam as comitivas que viajavam por diversos pontos do país. Discutiam com entusiasmo as propostas dos postulantes à presidência. Inúmeras vezes colocavam em cheque as candidaturas. Para o antropólogo Hernán Eufemio Gómez, outorgavam “sentido à tarefa que eles mesmos entendiam que era jornalismo”. O próprio Ruy Barbosa fundador do periódico A Imprensa, na década de 1890, esteve vinculado a diversos jornais.

Historiadores analisam essa campanha eleitoral como diferenciada das anteriores. Comitês levantando questões variadas se espalhavam pelos estados de norte a sul do país. Seus participantes falavam que a matriz política que se instalara a partir da República não pretendia promover a alternância de poder. Insistiam que as fraudes nos pleitos eram frequentes e usuais e que os eleitores votavam naqueles indivíduos determinados pelos grandes proprietários rurais. No jogo do poder, as eleições e os seus resultados expressavam a vontade de setores poderosos da população brasileira.

Todavia, segundo a historiadora Vera Lucia Bogéa Borges, havia algo de novo no ar nas eleições de 1910, porquanto “as ideias e as propostas apresentadas na sucessão presidencial apontam mais na direção de uma verdadeira disputa do que de uma simples armação para ficar tudo na mesma”. Traços dessa afirmação são perceptíveis uma vez que os grandes jornais tomaram partido e a população urbana, mesmo pequena, se comparada à rural, envolveu-se na campanha, ativamente, recepcionando a chegada e a partida das excursões eleitorais, frequentando os meetings, etc.

O consenso oligárquico estaria se esgarçando? Possivelmente, para alguns, nas querelas do período, os versos do poeta Cazuza, na canção Maioridade, fizessem sentido: O tempo vai dizer se o que espero me interessa.

Marinheiros como “sujeitos de direitos”

Marinheiros carregando o Minas Geraes,1910, em Biblioteca do Congesso/EUA (Fonte: Creative Commons)

Em tempos onde tradicionalmente a indicação dos parlamentares que concorriam às eleições era articulada nos bastidores políticos, a campanha presidencial de 1910, sutilmente, se desviava da visão consagrada pela historiografia tradicional, que considera as eleições do período “mera formalidade”. Na curta história republicana, os jornais e as revistas que circulavam nos estados brasileiros estampavam notícias sobre os comícios. Nelas, os discursos dos candidatos formalizavam promessas objetivando alcançar a presidência da República.

No jornal Correio da Manhã, que circulava na cidade do Rio de Janeiro agitando “o espírito público”, o ainda candidato Hermes Rodrigues da Fonseca (sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca) apresentou propostas para um futuro governo. Entre elas, estava a defesa do soldado cidadão – uma espécie de “salvador da pátria”. Era a idealização simbólica de um militar que, no 15 de Novembro, interveio na política nacional para defender os interesses dos brasileiros. Fundamentado nessa concepção (do soldado-cidadão), o novo governo almejava “inserir no imaginário popular o juízo de que o Exército era o povo em armas e, portanto, não era uma desonra para o povo a República ter sido feita pelas mãos dos militares, justificando, com isso, 1889”, segundo a historiadora Ethiene Cristina Moura Costa Soares. Porém, observa o historiador Celso Castro que, “apenas um grupo de militares – pequeno e muito específico – participou da oposição à monarquia, da conspiração e do golpe”. Havia militares, mas não “os militares”, conclui.

Articulando esse compromisso anunciado durante a campanha e tomando como ponto básico as reivindicações que constam no escrito de 22 de novembro de 1910, observa-se que os envolvidos na Revolta da Chibata pretendiam receber do Estado brasileiro justamente um tratamento de “cidadãos fardados que defendiam a Pátria”. E, que esse Estado lhes propiciasse a necessária proteção, além dos “direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir à Nação brasileira”. Estava em pauta o reconhecimento da plena cidadania prometidos pela República, “isto é, o direito de reivindicar a retirada dos oficiais incompetentes, a reformulação dos códigos disciplinares com a extinção da chibata e outros castigos corporais, o aumento do soldo, a educação de seus companheiros mais carentes e a reforma das escalas de trabalho”, conforme analisa o historiador José Miguel Arias Neto.

A questão envolvendo a cidadania no Brasil, onde a modernidade e o progresso se confundiam com a República, principalmente quando se referiam aos direitos civis fortemente ligados à memória da escravidão (pessoal ou coletiva), vem sendo largamente debatida. Na carta enviada ao presidente Hermes da Fonseca, os marinheiros se apresentando como “cidadãos brasileiros e republicanos”, declaravam que não podiam “mais suportar a escravidão na Marinha brasileira”.

Esses marinheiros, quase todos negros e mulatos recrutados pela polícia e comandados por oficiais brancos, ao registrarem suas pretensões tratavam o direito de cidadão não apenas no plano formal. Ao utilizarem a expressão “cidadão”, aludiam a uma prática que estava sendo construída, mediante o livre ir e vir, o pensar e o se associar, ou seja, a um exercício de elaboração da sua própria liberdade e cidadania. Em outras palavras: os marinheiros constituíam-se como “sujeitos de direitos”. Sendo cidadãos, no sentido de igualdade política, traziam para si o direito de reivindicar.

O que a revolta de 1910 enuncia é o “desejo de efetivação da República e, consequentemente, da necessidade de criação de uma carreira profissional para o marinheiro cidadão”, observa José Miguel Arias Neto. A grandeza da pátria consistiria no engrandecimento do “soldado cidadão” ou do “marinheiro cidadão” que, organizados, exigiam a participação na “res publica”, segundo os termos da carta apresentada pelos marujos da Armada.

Estudos mais recentes concebem o movimento de 1910 não apenas como um confronto onde indivíduos postulavam condições de trabalho dignas. Em 1909, um grupo de marinheiros esteve na Inglaterra e lá teve contato com efetivos de outras Armadas que não mais utilizavam as punições por chibatadas. Esse cenário, provavelmente, repercutiu entre os marujos. Segundo o site da Fundação Getúlio Vargas, João Cândido Felisberto estava entre eles e, ao retornar ao Brasil, teria criado “um comitê clandestino para organizar uma revolta”. Sob o manto da conspiração, reuniões transcorriam nos porões dos navios ou nos mesmos locais da capital federal.

De acordo com essa linha historiográfica, a Revolta da Chibata traduziu o esforço e o empenho de camadas sociais pelo reconhecimento dos seus direitos de cidadão. Os marinheiros amotinados demonstraram entender o sistema militar em que estavam integrados e do qual entendiam fazer parte. O movimento, portanto, não teria sido apenas uma ação reativa, mas um processo previamente coordenado e articulado, dispondo de agenda particular de caráter político.

A cidade e a mensagem: “Queremos resposta já e já”

Gazeta de Noticias, de 23/11/1910 (Fonte: BN Digital)

Os moradores de São Sebastião do Rio de Janeiro foram acordados, em 22 de novembro de 1910, pelo som do primeiro tiro de canhão que reboou pelos espaços da então capital republicana. Pouquíssimo tempo depois, novamente vindo da direção do mar, um outro estrondo ocasionou a quebra de janelas e de vidraças nas residências localizadas nas cercanias da Baía de Guanabara. Em pleno sentimento de insegurança, possivelmente entre rumores e intranquilidades, a população se perguntava: o que está acontecendo? Um golpe de estado em curso? Tentativa de destituir o novo governo? Protestos contra o preço das passagens dos bondes? Outra campanha de vacinação compulsória?

Ainda guardando na memória a Revolta da Armada acontecida em 1893 na mesma Baía de Guanabara, os moradores da cidade procuravam respostas para os acontecimentos surpreendentes. Tantas incertezas e interrogações alcançariam o presidente recentemente empossado assim como a sua equipe ministerial. Naquele momento repleto de dúvidas, um sinal de alerta monopolizaria as autoridades: providências urgentes precisavam ser adotadas. Prontamente, o marechal Hermes da Fonseca, já em seu gabinete presidencial, preocupou-se em manter “a ordem da capital da República”, segundo palavras do historiador Mário Maestri. Sem ter certeza da origem do ataque e imaginando que poderia ser uma tentativa de deposição, vinda especialmente dos civilistas derrotados nas urnas, ordenou que fossem colocados sob estreita vigilância os seus adversários políticos.

Após tais medidas, reuniu-se com os ministros da Guerra e da Justiça, preparando uma resposta militar que entendia estar à altura da situação. Determinou que o litoral do Distrito Federal até a cidade de Niterói fosse defendido, colocando de prontidão o efetivo existente na fortaleza de Villegagnon, o Batalhão Naval e a Escola Naval. Ordens foram expedidas para a 8ª Região Militar e os altos oficiais permaneceram aquartelados no Palácio do Catete e no Estado-Maior.

Por sua vez, a liderança do movimento, com a revolta já em andamento, ordenou que fosse enviada, por rádio, uma mensagem para a sede do governo federal. Coube ao ministro da Marinha transmitir ao presidente a informação de que ao menos três navios da esquadra brasileira estavam rebelados. O telegrama encaminhado dizia: “Não queremos de volta a chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem. Assinado: as guarnições Minas, São Paulo e Bahia”.

Entendendo que a disciplina deveria ser mantida a todo o custo, as autoridades constituídas emitiram a seguinte resposta: “O ministro da Marinha, em nome do presidente da República, declara que reclamações, quando justas e baseadas na lei, só podem ser atendidas quando feitas com subordinação e respeito aos poderes constituídos”.

Porém, até então, ainda não havia a certeza sobre quantos navios permaneciam fiéis ao governo federal. Mesmo não sendo concreta, levantou-se a possibilidade de que a sublevação alcançasse a totalidade da esquadra, além dos soldados e suboficiais do Exército. Sob coação, ante a proporção do ataque já efetivado e das possibilidades sinistras que se configuravam, o marechal presidente, na estranha condição de refém dos amotinados, se viu instado a estabelecer contato com os rebelados para negociar. Os representantes da República constatavam que os marinheiros, controlando parte da frota que incluía os Dreadnoughts, possuíam um poder de fogo superior àquele que forças militares oficiais dispunham.

O parlamentar José Carlos de Carvalho, que havia sido oficial da ativa, foi designado pelo Congresso para estabelecer um contato com os amotinados. Quando, transportado por uma lancha do Arsenal de Marinha, se encaminhava para cumprir a missão, interceptou uma carta, vinda do encouraçado São Paulo e endereçada ao presidente da República, com a assinatura de: “Marinheiros”. Nela, além da reivindicação principal, envolvendo o fim imediato dos castigos corporais, era estabelecido um “prazo de 12 horas para (...) resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada”.

Entretanto, Carvalho, no momento em que compareceu ao Congresso para relatar os acontecimentos, não mencionou a existência desse documento e muito menos o seu conteúdo. Construiu a sua narrativa informando que: “A gente que está a bordo é capaz de tudo, quando os chefes e marinheiros são indivíduos alucinados pela desgraça em que caíram (...). A situação é gravíssima”.

Quanto à mensagem produzida pelos marinheiros, não existe consenso entre os estudiosos sobre a sua autoria. O historiador José Miguel Arias Neto atribui a Ricardo de Freitas. Também são apontados Francisco Dias Martins, que se autodenominava “Mão Negra”, e Adalberto Ferreira Ribas, embora aquele que a redigiu possa não ser, necessariamente, o autor do seu conteúdo. Os três tinham o domínio da cultura letrada e serviam a bordo do cruzador ligeiro Bahia. Para os historiadores Marco Morel e Sílvia Capanema P. de Almeida, tudo “indica que Ribas tenha sido o escriba do manifesto, com as reivindicações do movimento contra os castigos corporais, enviado ao governo do marechal Hermes da Fonseca”.

O teor do documento também é analisado de forma diferenciada pelos pesquisadores. Alguns consideram as exigências vagas. Outros observam que o manifesto evidenciava um movimento bem planejado e que os amotinados souberam se organizar, pois o texto demonstra coesão, exprimindo com clareza as demandas coletivas e urgentes dos envolvidos. Nesse sentido, as reivindicações desenhavam as bases de um projeto político de mudanças na Armada. Todavia, se há discordâncias entre os estudiosos, há um consenso quanto ao caráter universal da solicitação.

O presidente Hermes da Fonseca e as demais autoridades perceberam a gravidade do momento e dos acontecimentos que se desenrolavam nas águas da Baía de Guanabara. Mergulharam em hipóteses; avaliaram as possibilidades. Discordavam e conjecturavam, tropeçando em cenários reais e imaginários. Os marinheiros cumpririam a promessa se o governo republicano decidisse demorar a atendê-los?

Atacar? Eis a questão

Minas Geraes, 1909, em Tyne & Wear Archives & Museums (Fonte: Wikimedia Commons)

Naquele momento, diante do cenário que se apresentava com a subversão da hierarquia militar, as possibilidades de contragolpe por parte do governo mediante ordens drásticas de enfrentamento militar radical eram preocupantes. Um bombardeio em plena Baía de Guanabara? Pairava sobre o Rio de Janeiro, capital federal, o fantasma dos encouraçados do tipo Dreadnoughts e do seu alto poder de fogo.

Para o governo republicano, que havia adquirido, festejado e anunciado ao mundo a propriedade dos maiores e mais modernos encouraçados, era irreal arriscar a sua destruição. Observa o professor João Roberto Martins Filho que estava em pauta uma questão simbólica e que o governo e a Marinha arriscaram-se à “humilhação, em troca da preservação dos Dreadnoughts. Na verdade, em 1910, a decisão de afundar ou danificar seriamente um Dreadnought da própria esquadra representaria um imenso dilema para qualquer marinha do mundo”.

O “pânico e o fascínio” tomaram conta da população da capital federal, segundo registra o historiador José Murilo de Carvalho. Pânico, ao constatar que os navios sob o controle dos revoltosos se movimentavam nas águas da Baía de Guanabara com um assustador poder de fogo “capaz de causar grandes danos se dirigido contra a cidade”. Em 23 de novembro, o jornal Correio da Manhã, que apoiara a Campanha Civilista, publica que o Rio “estava completamente em pânico”. Já o fascínio devia-se ao espetáculo promovido pelas manobras dos quatro navios de guerra pela Baía de Guanabara. Contornavam as ilhas do Viana e do Mocanguê, perto de Niterói; passavam pelas ilhas Fiscal, das Cobras e Villegagnon; algumas vezes, saíam baía afora por entre as fortalezas de Lage, Santa Cruz e São João levando medo e incerteza, diante dos poderosos canhões, para a região de Copacabana.

Pesquisadores do tema afirmam que essa habilidade, indicativo de competência, chocava-se com a concepção que definia os marujos como indivíduos toscos e incultos, recrutados sem critério algum: a ralé. Por meio dessa avaliação, eram a escória da sociedade. Entretanto, em curto espaço de tempo, diante da revolta inconteste, as autoridades republicanas mergulharam em reflexões perturbadoras, avistando os navios da Armada do Brasil sob o comando dos marinheiros sublevados.

Historiadores observam que a punição imposta em 16 de novembro de 1910 ao marinheiro Marcelino Rodrigues Meneses, conhecido como “Baiano”, que servia no Minas Gerais, precipitou os fatos. A punição imposta, por ter levado bebida alcoólica para bordo e por ferir um cabo a navalhadas, foi a de receber 250 chibatadas. Ao longo do castigo, desmaiou, e nem assim a sentença foi suspensa o que gerou revolta no restante da tripulação que presenciava a aplicação da pena.

Na noite de 22, os sublevados do Minas Gerais mataram seis oficiais, incluindo o comandante João Batista das Neves. O segundo-tenente Álvaro Alberto da Mota e Silva escapou do encouraçado alertando outros oficiais que conseguiram alcançar a terra firme. A chamada “marujada negra” aos brados de “viva a liberdade” e de “abaixo a chibata” tinham assassinado ou expulsado oficiais, sargentos e até marinheiros contrários à trama. Controlavam os dois modernos encouraçados – Minas Gerais e São Paulo – além do navio de guerra Deodoro e do cruzador ligeiro Bahia.

Os fatos que se desenrolaram incluíram: o bombardeio nas instalações da Marinha localizadas na Ilha das Cobras, e ordens dadas no dia 25, pelo ministro da Marinha Almirante Joaquim Marques Batista Leão, para que os navios rebelados fossem postos “a pique, sem medir sacrifícios”. Porém, um radiograma recebido no Congresso, enviado pelo senador José Carlos Carvalho, anunciava que os amotinados se submetiam às autoridades. No dia 26, a anistia foi aprovada. A rebelião se encerrava com as armas depostas e com as embarcações devolvidas.

O jornal Correio da Manhã publicou: “A anistia foi a capitulação dos próceres públicos, e, como toda capitulação, deplorável. Melhor teria sido se não viesse a figurar em nossa História. Mas, incontestavelmente, foi remédio extremo para extremo mal”,

Porém, a crise retornou evidenciando que os problemas não estavam resolvidos. Quase que imediatamente, oficiais começaram a expulsar, da Armada, ex-amotinados sob a acusação de indisciplina. Em 9 de dezembro, outra revolta eclodiu, então no cruzador Rio Grande do Sul e no Batalhão Naval da Ilha das Cobras. A reação veio de pronto: a embarcação foi celeremente retomada e o Batalhão Naval bombardeado pelo Exército. O número de mortos e feridos não é preciso. A imprensa da época chegou a contabilizar mais de 300.

A partir daí, as prisões se sucederam. O historiador Álvaro Pereira do Nascimento informa sobre os apenados que “16 deles morreram asfixiados numa masmorra da Ilha das Cobras. Mais de 100 outros foram enviados para o Acre, junto a mais de 200 presos e presas da Casa de Detenção. Lá, foram obrigados a trabalhar nos seringais e na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. João Cândido foi um dos sobreviventes da cela da Ilha das Cobras; passou dois anos preso, incomunicável, e só conseguiu sua liberdade após um arrastado processo militar, que o acusava de participação no movimento de dezembro”.

“Não demos à ameaça maior importância”

Essa frase dita pelo comandante do cruzador ligeiro Bahia, tomado pelos marinheiros durante a Revolta da Chibata, reflete um arrependimento e um reconhecimento por não ter dado atenção a um aviso que recebeu por meio de uma carta anônima, em setembro de 1910. O texto alertava que uma crise aconteceria se as tentativas de melhorar as condições de trabalho dos marinheiros permanecessem frustradas. Sem representatividade, impedidos de votar, pois a Constituição republicana de 1891 eliminou a exigência de 200 mil réis mas manteve a exclusão dos analfabetos. As ameaças e o pegar em armas podem ter sido o caminho escolhido pelos marinheiros por não terem outras alternativas.

Investigando razões para explicar o comportamento e as ações dos revoltosos, historiadores, por analogia, sugerem que o movimento pode ter sofrido a influência dos dramáticos acontecimentos ocorridos em junho de 1905 a bordo do encouraçado russo Potemkin

Os principais órgãos de imprensa receberam informações sobre os acontecimentos por intermédio de radiogramas emitidos pelos revoltosos. As publicações repercutiram os acontecimentos. Diversamente do que existe atualmente, nas décadas iniciais do século XX a população de um centro urbano, como o Rio de Janeiro, “lia o mundo” por meio da imprensa escrita. As notícias tratavam de modo diferenciado aquele movimento liderado pelo marinheiro João Cândido Felisberto, que, contando com a adesão de mais de dois mil marujos embarcados em encouraçados recém- adquiridos e descumprindo as estritas regras militares, direcionaram os canhões das embarcações para a sede do governo federal.

A Notícia, de 23 de novembro de 1910, publicava: “O governo fizera sentir aos revoltosos – não sabemos se por meio de radiograma ou outro qualquer meio – que de modo nenhum atenderia as reclamações dos marinheiros, enquanto estes não deixassem a atitude revoltosa. No caso dos mesmos deporem as armas, seriam convenientemente estudadas essas reclamações para que o governo pudesse agir com justiça”. No mesmo dia, A Tribuna observava: “Por uma notícia (...) sabe-se que toda a oficialidade do Minas Gerais que se achava a bordo quando se deu o levante está morta. Essa notícia terrível causou, como era natural, a mais dolorosa impressão entre as pessoas que se achavam na repartição central de polícia”.

Nesse cenário, decerto é oportuno sugerir uma reflexão, a partir das palavras de Machado de Assis: “As coisas só são previsíveis quando já aconteceram”.

“Eu dispunha de todos os poderes”

Gazeta de Notícias em 24/11/1910 (Fonte: BN Digital)

Aquele que, frequentemente, é visto como o comandante de toda a esquadra revoltada e que por isso ficou conhecido como “Almirante Negro”, em 29 de março de 1968, se reconhecendo como líder, declarou em entrevista concedida, para o ciclo de História Contemporânea do Museu da Imagem e do Som: “Eu tive o poder na organização da conspiração (...). Eu dispunha de todos os poderes. (...) Depois de estourar o movimento, isto foi no dia vinte e dois de novembro de 1910. Primeiro, entramos em contato com o governo do Marechal Hermes, e então recebemos por meios telegráficos que não confabulavam com os revoltosos. Essa foi a revolta do Marechal, a resposta”.

Porém, o historiador Álvaro Pereira do Nascimento entende que João Cândido foi fundamental, mas não “foi somente mentor intelectual- ou o único”. Não poderia fazer tudo sozinho e nem seria viável. Afinal, existia um coletivo que desejava que fossem extintas as punições por meio da chibata e do bolo (além da palmatória, prisão a ferros, golilha, solitária), que os soldos fossem elevados e que a alimentação melhorasse assim como as condições de trabalho.

As reivindicações registradas na mensagem de duas páginas endereçada ao presidente Hermes, na manhã de 23 de novembro, tratavam de um todo. Exigiam a retirada daqueles que classificavam como “oficiais incompetentes indignos de servir à Marinha” e a reforma do “código imoral e vergonhoso”, a fim de que desaparecesse na letra da lei “a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes”. Tratavam do aumento do “nosso soldo pelos últimos planos do ilustre senador José Carlos de Carvalho”.

Também pleiteavam a educação dos “marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda e mandar pôr em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha”. Esse ponto, nem sempre citado pelos estudos que discutem o tema, significava que coletivamente, almejavam garantir a segurança, a bordo das embarcações e nas unidades de terra. E que não bastava apenas extinguir os castigos físicos, controlando a prática dos oficiais, já que, muitas vezes, essas ações intimidavam os desordeiros. Havia comprovadamente inúmeras rivalidades entre os marinheiros. Vários processos criminais, julgando brigas, lesões corporais e homicídios, corroboravam tal realidade. Assim, se a Marinha do Brasil atuasse preparando e educando os marujos, para as tarefas e para a vida em grupo, as tensões diminuiriam.

Ponto e contraponto

Entre as versões que abordam a Revolta da Chibata, existe o relato do vice-almirante Armando de Senna Bittencourt que analisa a criação do mito, do herói João Cândido, e sua participação na trama ocorrida em 1910. Acredita que inúmeros estudos que tratam do assunto carecem de isenção. Observa que a Marinha havia se acomodado à forma atrasada de punição, mantendo a chibata de forma equivocada “como tradição do passado para manter a ordem nesse ambiente de brutos”. Considera que o motim, planejado e premeditado, resultou na morte e no sofrimento de indivíduos que não eram criminosos, principalmente no Minas Gerais. Para a Marinha e para o país representou um acontecimento deplorável, e o seu líder o marinheiro João Cândido Felisberto, “perdeu completamente o controle da situação a bordo”.

Para o oficial Armando de Senna Bittencourt, o cerne da questão encontra-se no fato de que, antes do progresso tecnológico, a mão de obra utilizada nos navios mistos com propulsão a vela e a vapor, onde se navegava principalmente a favor do vento, necessitava de elementos com força física e dotados de coragem. Indivíduos preparados para enfrentar as dificuldades que surgiam em meio às manobras com as velas, às vezes enfrentando tormentas. Com a chegada dos modernos encouraçados do tipo Dreadnougth, o perfil dos novos marinheiros deveria ser outro. A bordo, eram necessários eletricistas, telegrafistas, mecânicos, enfim pessoal especializado bem diferente daqueles que o recrutamento compulsório obtinha, e a Marinha demorou a perceber que não podia mais aceitar recrutas com o perfil antigo.

A importância de João Cândido no movimento, ainda segundo os argumentos de Senna Bittencourt, restringiu-se ao período em que negociou a anistia, situação publicada na imprensa da época que lhe atribuiu a liderança da revolta. Foi do cruzador Bahia que partiu o primeiro aviso de uma revolta em curso na noite de 22 de novembro. Então, não partiu dele, no Minas Gerais, “o sinal que deu início ao motim; ele não manteve o controle da situação a bordo durante a barbárie (...); e depois do regresso dos oficiais para o navio, perdeu a liderança para alguns radicais que foram chamados de ‘faixas preta’ ”, conclui.

Por outro lado, o historiador José Miguel Árias Neto considera que a figura de um herói não pode ser evocada sem causar polêmica. Essa imagem “é um referencial para marinheiros em busca de anistia e para negros em busca de reconhecimento na sociedade brasileira contemporânea. (...) Não apenas porque existirão oficiais da Armada prontos para negá-la, mas principalmente porque João Cândido é contraditório em seus sentimentos, palavras e ações, ou seja, possui as características inerentes à condição e à historicidade humanas que a imagem de um herói não suporta”.

Pontos e contrapontos. As diferentes interpretações. O tempo perceptível em palavras como ontem, hoje ou amanhã. O tempo linear repleto de avanços, de recuos e de possíveis paradoxos e ambiguidades. Passado? Presente? E o futuro? Afinal como analisou o historiador François Furet “fazer história é contar uma história”? O desafio é significativo, pois o historiador jamais escapa do presente e talvez esta ancoragem faça a História ser tão enriquecedora”.

Conclusões

“O melhor é nada mais dizer”?

O jornal O País na sua edição de 28 de novembro de 1910, quando as embarcações não estavam mais sob o controle dos revoltosos, publicou: “Sobre o levante da marinhagem, felizmente acabado, parece que o melhor é nada mais a dizer. O país só tem a lucrar com o silêncio geral sobre esse fato. Na vida dos povos, como na dos indivíduos, há lembranças que desejaria apagar de todo, pela tristeza, pelo vexame, pela aflição que despertam. Para o Brasil, a revolta dos marujos é uma delas. Não se pense mais nessa vergonha ou nesse infortúnio”.

A recomendação dada pelo jornal, em relação aos fatos que envolveram a Revolta da Chibata, não foi seguida. Pesquisadores, historiadores e sociólogos mergulharam no tempo. Analisaram e debateram os motivos, as razões, os fatores internos e externos que, nos primeiros anos do século XX, conduziram ao movimento. Documentos foram consultados, depoimentos recolhidos, palavras agrupadas em urdidura e trama. Memórias pretéritas, individuais ou coletivas, desenharam os conflitos dos amotinados que tentavam garantir para as suas vidas “um espaço no qual assegurassem dias mais felizes”, observa o historiador Álvaro Pereira Nascimento.

Registra o antropólogo Nathan Wachtel que a “realidade é algo inesgotável. Por sorte, a cada investigação renova-se o passado”. Nesse artigo, o passado foi retomado pretendendo que experiências e versões, dos marinheiros ou do oficialato, não sejam esquecidas. Mesmo em meio a pontos de vista e interpretações divergentes. Afinal, “não se escreve a história dos “vencidos sem abordar a dos vencedores”, ensina uma clássica lição.

A narrativa de toda e qualquer experiência histórica, conforme assinala o historiador Ilmar Rohloff de Mattos deve “ter como referência primeira e permanente a humanidade como uma coisa só, formada por seres que compartilham uma mesma e única natureza (a unidade biológica dos seres humanos) e tendo na diversidade sociocultural sua marca distintiva e necessária”.

Reflexões

“A História é sempre risco”

Ao longo do tempo, as formas de entender o que é a História e o papel de quem a conta, incluindo as definições teóricas, sofreram mudanças importantes e singulares. Inúmeras questões abordaram a natureza do trabalho do historiador e o uso das fontes, entre outras discussões pertinentes e expressivas. Analisando as principais correntes historiográficas, de acordo com o tempo em que foram construídas, é possível identificar traços da sua própria época. Interpretações. Escolhas. Debates que, ao contrário do que um olhar pouco atento possa intuir, estão longe de chegar ao final. O caminho prossegue tornando-se cada vez mais intenso.

Contar (ou recontar) a chamada Revolta da Chibata, sem perder de vista o seu tempo histórico com suas singularidades econômicas, políticas, sociais e culturais, representa uma tarefa desafiadora e ao mesmo tempo sedutora. Como em outros movimentos populares, esse episódio foi marcado por rupturas e continuidades.

Historiadores observam que a partir das décadas mais recentes ampliaram-se os estudos abordando o movimento de 1910. Para o historiador Mário Maestri, as dificuldades existem porque são escassas as informações quanto aos acontecimentos e quanto às deliberações dos marinheiros. Observa que “conhecemos as reivindicações dos marujos, mas desconhecemos as influências políticas e ideológicas que inspiraram as lideranças dos marinheiros”, que apesar da derrota foram vitoriosos.

Por sua vez, o historiador naval Hélio Leoncio Martins considerando que a partir da “anistia, nenhum processo apurou os aspectos da preparação do motim, pelo que pouco se conhece de seus detalhes”. Para ele a “comédia de erros que afetou uma triste fase da vida da Marinha pode ser lembrada, analisada, comentada, lamentada, mas nunca comemorada”.

Alguém já disse que viver é perigoso. Importante seria acrescentar que escrever também é. Retomar, buscar as versões, dar voz aos protagonistas, ou não, notáveis ou anônimos é uma tarefa repleta de meandros e de complexidades. Inúmeras questões se sobrepõem, formando pilhas e mais pilhas de perguntas nem sempre em equilíbrio. Nas diferentes experiências vividas pela humanidade em tempos e em espaços diversos, qual o enredo predominante? Todas as experiências históricas resultam de processos sincronizados?

Quem conta um conto aumenta um ponto. Frase reveladora da sabedoria popular que, reunida à consideração feita pela antropóloga Lilia Moritz Schzwarcz, a “História é sempre risco”, ganha sentido valioso e reflexivo.

E assim é.

Jeanne Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O Mochileiro do Futuro.

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