Questões importantes da Filosofia, que a humanidade se coloca desde a Grécia Antiga, podem ser tratadas com crianças. Mas há poucos materiais adequados para isso. A série inglesa O Que Me Faz Ser Eu?, exibida pela MultiRio, vem suprir esta lacuna. São desenhos animados divertidos e envolventes que abordam conceitos filosóficos fundamentais através de situações que as crianças vivem no dia a dia.
O primeiro episódio traz a história clássica do barco de Teseu. À medida que faz viagens, o barco, que é todo de madeira, precisa de consertos. Em cada conserto, uma peça de madeira desgastada é trocada por outra idêntica, nova e de metal. Até que um dia, Teseu tem um barco todo feito de metal. A aparência é a mesma, mas surge a questão: afinal, ele pode ser considerado o mesmo barco?
Daí deriva a pergunta que dá nome à série: O Que Me Faz Ser Eu?, que rende um instigante debate sobre identidade. Assim como aconteceu com o barco, a cada sete anos as moléculas do corpo também se renovam completamente. Se quem define você é o seu corpo, você já não é mais quem era há sete anos? Por outro lado, se você se define pela sua forma de pensar, e um dia muda de opinião, já não é mais a mesma pessoa? Você é hoje a mesma pessoa que estava no berço quando bebê?
Essas charadas funcionam, para as crianças, como introdução ao pensar, ensinam a questionar o que parece óbvio e levam a refletir sobre nossa essência.
Várias abordagens podem surgir no trabalho com crianças. Uma delas é a partir do pensamento de Heráclito: “Nunca se passa duas vezes pelo mesmo rio”. Será que as pessoas são como um rio? Você é o mesmo, ou está sempre mudando?
Outra abordagem possível é o tema do preconceito. A partir deste episódio, pode-se falar sobre a atitude das pessoas que julgam os outros pela cor da pele, pelos bens materiais, pela aparência física, etc. Oportunidade para ensinar às crianças que o exterior diz pouco sobre nossa essência. Avaliar alguém pela aparência seria o mesmo que avaliar o barco por ter peças de madeira ou de metal!
Fernando Pessoa escreveu: “Tristes de nós, que trazemos a alma vestida. Há que saber desvestir a alma para ver o interior. Isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender”. Filosofia é isso: questionar até desaprender o que se sabe, para aprender de novo de um modo diferente.
Desafios como esses podem mobilizar a inteligência da criança. Assim, mais do que usar a cabeça para resolver problemas de matemática ou interpretar textos em português, ela mobiliza a inteligência para outro tipo de pensamento, convidada a conhecer melhor a si mesma e a se indagar sobre a realidade.
Os benefícios de tal prática transcendem o próprio raciocínio filosófico e podem impactar positivamente outras competências, como o pensamento lógico-matemático, a criatividade, a imaginação, a capacidade de argumentação, a sensibilidade.
O filósofo Sócrates já dizia: “Uma vida que não é examinada não vale a pena ser vivida”. Trazer questões de Filosofia para as crianças, de forma acessível e divertida, é um modo de despertar nelas a inquietude da razão e o desejo se aventurar no conhecimento.
Para saber mais
• CHAUÍ, Marilena. "Conhece-te a ti mesmo – Neo e Sócrates”. In Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
• MATRIX (filme), Lana Wachowski e Andy Wachowski, EUA, Warner Bros, 1999.
• PESSOA, Fernando. “O Guardador de Rebanhos – Poema XXIV”. In Alberto Caeiro: Poemas Completos. Recolha, transcrição e notas: Teresa Sobral Cunha. Posfácio: Luís de Sousa Rebelo. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
Andrea Ramal é doutora em Educação, diretora da ID Projetos Educacionais