Consta-nos que há poucos dias uma partida de proletários (ao muito 15 homens) atacaram o quartel da Vila de Manga, do qual se apossaram.
23 de dezembro de 1838 – Crônica Maranhense
João Francisco Lisboa
Considerações
João Francisco Lisboa, nascido no Maranhão em 1812, segundo o historiador Nélson Werneck Sodré “foi exemplo do jornalista e escritor, vindo da fase da imprensa política para a fase em que as duas atividades se confundiram, sendo em ambas personagem destacada”. Crítico dos costumes políticos, durante o governo de Pedro de Araújo Lima (1837-1840) combateu a política centralizadora que era adotada naquela época. Responsável pela Crônica Maranhense fez da publicação um dos jornais mais bem redigidos do país, de acordo com a opinião de inúmeros estudiosos. No intenso debate político que acontecia na imprensa, Lisboa desempenhou expressivo papel fazendo do periódico onde atuava “a principal tribuna de onde se dirigiam ataques e críticas ao governo”. Consequentemente, seu editor era frequentemente “acusado de fomentar o clima revolucionário na província”, considera a historiadora Maria de Lourdes Monaco Janotti.
Na época, muitos temiam que as ideias veiculadas na Crônica Maranhense, permeadas de opiniões, motivassem os seus leitores a concordarem com elas. Tal possibilidade era motivo de extrema preocupação especialmente para os governantes que, contestados, divergiam das posições apregoadas pela publicação.
Nas páginas desse jornal, no dia 23 de dezembro de 1838, surgiria a notícia sobre a revolta conhecida como Balaiada. O texto publicado abordava o episódio acontecido no dia 13 no povoado maranhense de Vila da Manga, situado às margens do Rio Iguará (hoje município de Nina Rodrigues, no Maranhão). A nota informava que naquela localidade a cadeia pública local fora invadida pelo vaqueiro Raimundo Gomes.
Por não ser um único movimento, se estenderia pelas províncias vizinhas do Piauí e do Ceará, até 1841. Contudo, de acordo com a historiografia oficial brasileira, os fatos ocorridos no Maranhão seriam considerados mais relevantes do que os episódios verificados nas duas outras províncias, vistos como prolongamento das ocorrências no teatro maranhense.
O conflito recebeu, mais tarde, o nome de Balaiada (ou, como registra o historiador Caio Prado Júnior, “balaiada de dos Anjos”), pois um dos seus principais líderes, Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, tinha o apelido de Balaio, por ter como ofício confeccionar e vender um tipo de cesto feito de palha. Por onde se alastrou, mobilizou milhares de participantes contra os governos provinciais, controlou expressivas áreas territoriais e exigiu uma intervenção violenta por parte das forças militares para ser subjugada.
Procurando entender as especificidades da Balaiada, observa-se que as autoridades constituídas utilizavam, como em outras situações similares, uma variedade de termos quando se referiam a ela em registros oficiais: rebelião, revolta, sedição, insurreição, revolução e sublevação. Independentemente do nome, as “manifestações podem ser enquadradas no conceito de movimento social (...) onde se confrontam grupos populares e seus reconhecidos opressores”, ressalta a historiadora Claudete Maria Miranda Dias.
No olhar de Caio Prado Júnior, na origem da Balaiada encontraremos "as mesmas causas que indicamos para as demais insurreições da época: a luta das classes médias, especialmente urbanas, contra a política aristocrática e oligárquica das classes abastadas, grandes proprietários rurais, senhores de engenho e fazendeiros, que se implantara no país”.
As ações efetivadas pela massa sertaneja na Balaiada representaram graves ameaças para as autoridades governamentais. Entre elas, as trincheiras construídas nas matas, a mobilidade dos participantes, o bloqueio nos caminhos, as surpresas nos ataques, o tempo de duração; aspectos que traçam o perfil do movimento “um dos mais sérios e notáveis que o Brasil conheceu”, observa Nélson Werneck Sodré.
Os “perversos sertanejos” e as “forças da legalidade”
Na Balaiada, como em outros conflitos, a documentação consultada pela historiografia tradicional (em vigor no Brasil por longo tempo) é originária de fontes oficiais. Tais relatos elaborados pelos dirigentes constituídos descrevem seus participantes como uma “ameaça à paz e à tranquilidade da província maranhense”. Traduzidos como “bandidos, assassinos, facínoras, rebeldes que infestavam a região”, podiam ser identificados também como “ralé”, “arraia miúda” ou “plebe ignara”.
Registros da época, muitas vezes elaborados pelos comandantes da repressão, referem-se à massa sertaneja maranhense como “um grupo sanguinário” que, independentemente do gênero ou da idade, praticava incontáveis assassinatos, colocando em perigo a “ordem estabelecida”. Sob tal ótica, diante da violência dos “perversos sertanejos”, as “forças da legalidade” eram enaltecidas e incumbidas de pacificar as regiões conflagradas pelos revoltosos.
Assim, estudos antigos de movimentos populares, como o dos balaios se restringiram em reproduzir a fala daqueles que comandaram a repressão, cujo teor resumiu-se ao relato cronológico dos fatos de acordo com o desenrolar da rebelião. Dessa maneira, não ampliaram perguntas, não aprofundaram interrogações e nem se detiveram na interpretação da multiplicidade de questões pertinentes aos conflitos.
Nessa linha de pesquisa a miséria e a opressão vivenciadas pelas camadas sociais mais humildes não são consideradas para entender o porquê da “balaiada de dos Anjos”. A história que emerge de tais análises reproduz, praticamente, o discurso das autoridades; fala desvinculada das vontades e das lutas dos setores populares, formados por camponeses, vaqueiros, sertanejos e escravos, que lutavam contra as injustiças sociais reinantes.
Inegavelmente os documentos originais, da forma como foram produzidos por seus autores, possuem importância fundamental para que a História seja escrita: cartas, diários, jornais, mapas, inquéritos policiais, testamentos, entre outros registros, expressam os traços da vida e do viver dos homens. Por inexistir (ou por não terem sido encontradas) fontes primárias elaboradas pelas populações desvalidas, é preciso analisar os registros oficiais, buscando, além de valorizar as informações existentes, ampliar o olhar averiguando o momento histórico e sociocultural reinante.
Observa a historiadora Claudete Maria Miranda Dias que fatos do passado não chegam “puros” até o presente; os “documentos não são donos da verdade”, sendo quase infinita a diversidade dos testemunhos históricos, pois tudo o “que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar sobre ele”. Porém, conforme alerta o historiador Marc Bloch, é preciso refletir atribuindo especial atenção ao que os registros “nos dão a entender”.
O desafio consiste em examinar e interrogar os testemunhos oficiais, apurando os motivos e as razões que conduziram as camadas populares a se envolverem em ações como a Balaiada. Pessoas e atos que, reinterpretados, traduzem, no olhar do historiador Peter Gay “um conjunto de possibilidades realizado no âmbito do espaço e no fluxo do tempo, e que cada ator e atriz do drama humano, seja protagonista, ou simples figurante, é chamado a desempenhar papéis determinados através do nevoeiro do caráter, das fortunas econômicas e das identificações regionais ou sociais”.
Reinterpretando pessoas e atos
Desde a segunda metade do século XX, estudos e abordagens, em detalhes e nuances, aprofundaram as investigações, reinterpretando o papel dos protagonistas balaios que, anteriormente descaracterizados, eram estreitamente analisados pelas lentes das camadas dominantes como “bandidos” ou “assassinos”.
Outras abordagens, elaboradas a partir da tradição oral (método que consiste em recolher depoimentos de testemunhas sobre acontecimentos ou modo de vida, como fontes para a compreensão de fatos do passado), avançaram buscando encontrar novas respostas. O historiador Matthias Röhrig Assunção, tratando a questão, considera que “a memória oral nos aproxima da experiência de vida, e da visão do mundo (...) como eles e elas transmitiram a seus filhos, netos e tataranetos, e também, a algumas outras pessoas”. Por sua vez, considera a historiadora Claudete Maria Miranda Dias que utilizar a oralidade “é uma prova de que é possível resgatar a memória longínqua (...), levando-se em conta, é claro, os equívocos, lacunas e interpretações, risco que existe também na documentação escrita”.
Assim, por meio das narrativas de casos significativos acontecidos no teatro maranhense, emerge uma versão bem diversa daquela que considerava os balaios como “bandidos”. Eram pessoas do povo, homens livres e pobres, como vaqueiros, artesãos, lavradores, negros, mestiços e escravos que enfrentaram a ordem dominante, representada por setores como o dos grandes proprietários agrários regionais. A ação que efetivaram foi uma resposta à violência da sociedade escravagista.
Outras pesquisas aprofundaram situações expressivas, como a complexa situação econômica vivenciada pelo Maranhão no tempo em que os fatos aconteceram. Um ponto significativo, também, aborda a participação dos cativos na Balaiada que ganhou destaque como mais uma forma de luta e de resistência contra a escravidão. Todavia, estudos indicam que movimentos conduzidos por escravos precedem à época da Balaiada. Portanto, nesse momento, não se aproveitaram de nenhuma inquietação ou de tumulto para se organizarem em quilombos ou para promoverem, conforme nomeado pelas autoridades, “insurreições”.
A aproximação da população livre e pobre com os escravizados foi propiciada pela crise na lavoura algodoeira maranhense e pelas precárias condições de vida desses grupos. No decorrer do conflito, tal ligação cresceu, preocupando extremamente as autoridades governamentais que, temendo o fortalecimento do movimento balaio e observando seu desdobramento em dois – insurreição de escravos e revolta sertaneja – empreenderam uma violenta repressão, enviando tropas militares bem armadas comandadas por Luís Alves de Lima e Silva.
Somando as linhas de pesquisa, desponta um panorama renovado sobre o papel que na Balaiada desempenharam seus protagonistas. Pessoas comuns que, ao se armarem pretendendo enfrentar as autoridades constituídas, almejavam escapar das arbitrariedades que sofriam diuturnamente. Indivíduos representados, predominantemente, por vaqueiros, índios, caboclos e escravos fugidos. Personagens propositadamente esquecidos ou pelo vencedor Estado Imperial ou pelas versões que ocultam as lutas e os enfrentamentos onde, verdadeiramente, concorreram populações livres, pobres e mestiças, além das escravizadas.
Disputas palmo a palmo: uma fase conturbada
Desde a época da América portuguesa, os diferentes segmentos sociais que compunham as classes dominantes disputavam, palmo a palmo, o poder político. Isso incluía o controle das vilas, das capitanias e os favores reais. Avançando no tempo, no perpassar dos ponteiros do relógio, depois da euforia inicial provocada pelo Sete de Setembro, sérios conflitos de interesses e de vontades estariam presentes no Primeiro Reinado. Após o Sete de Abril, quando D. Pedro I abdicou em favor do seu filho menor de idade Pedro de Alcântara, as tensões permaneceram vivas e latentes ameaçando a unidade do país. Para o historiador Nélson Werneck Sodré, o Império do Brasil vivia uma fase conturbada refletindo a “extrema fragilidade da sua estrutura”.
A saída de cena do Primeiro Imperador, que vira a sua popularidade encolher em meio aos problemas econômicos e financeiros além da forte oposição na imprensa e na Câmara dos Deputados, aumentou a pressão política. Contudo, para o historiador José Murilo de Carvalho, no momento da Abdicação “o Brasil não chorava. Tomava, entusiasmado, posse de si mesmo”. Tal ideia ganha sentido quando outros estudiosos registram que de 1831 até 1840, enquanto duraram as Regências, o país viveu uma “experiência republicana”, pois, de algum modo, desaparecera, mesmo que momentaneamente, a tradicional soberania concentrada na pessoa de um monarca.
Não era um período simples. A aguda crise política em oposição ao primeiro imperador, as disputas pelo governo regencial, a partir “da vagatura do Trono e da falta de unidade (...) da elite política imperial, ensejaram a formação de facções distintas”, aponta o historiador Marcello Basile. Possivelmente, muitos se perguntavam se o Brasil, na ausência de um sucessor dinástico em condições de assumir o trono imperial, conseguiria manter a sua unidade política.
A divulgação dos fatos interligados à Abdicação ocorridos na Corte do Rio de Janeiro, espalhou-se lentamente pelo país. Registra o historiador José Murilo de Carvalho que a “sensação de liberdade levou também à emergência de conflitos”. Durante o tempo em que vigorou o período regencial, inúmeros levantes aconteceriam “nas cidades principais, sobretudo as marítimas, cobrindo quase todas as províncias”.
Enquanto os regentes governaram o país, somaram-se as reivindicações populares traduzidas em conflitos espalhados pelo Império. Homens livres brancos pobres, mulatos, mestiços, pardos e negros forros, foram às ruas em busca do direito de participação na vida política e de melhores condições de vida. Se por um lado contaram quase sempre com a participação popular, por outro foram repetida e rigorosamente esmagados pelas forças governistas. O Período Regencial, contudo, não deve ser analisado como propício para insubordinações já que “nem o trono é garantia de paz, nem as regências são necessariamente atribuladas”, ressalta a historiadora Maria de Lourdes Monaco Janotti.
Adiante, no desenrolar do processo político, o país se realinharia. Inicialmente, a partir da ofensiva dos setores liberais. Posteriormente, com os conservadores no poder: predomínio obtido por meio do “golpe da maioridade”. Nos dois atos, o Estado Imperial foi essencialmente um instrumento da classe senhorial, representada pelos proprietários de escravos e de terras, componentes da chamada boa sociedade imperial.
A província do Maranhão
Apesar das dificuldades estatísticas que informem o total de habitantes que havia no Brasil, já que um recenseamento geral aconteceria apenas em 1872, dados fornecidos pelo historiador Caio Prado Junior arrolam que o Maranhão contava, pelos anos em que a Balaiada aconteceu, com uma “população total de pouco mais de 200 mil habitantes, sendo que, desses, 90 mil escravos, além da enorme massa – como aliás todo o sertão nordestino – composta por trabalhadores rurais empregados na pecuária” e nas atividades agrícolas. O número de escravizados representava alta proporção para a época.
No século XIX, a atividade ligada à lavoura, como o plantio do algodão, representava na economia do Nordeste um papel importante fortemente presente “no Sertão e no Agreste e com significativa presença no Maranhão”, aponta o historiador João Antonio de Paula. Nas três primeiras décadas, a economia maranhense poderia ser chamada de algodoeira, voltada predominantemente para o mercado internacional. Diante desse perfil, as situações oriundas de fatores externos, como a concorrência promovida por outras áreas agrícolas (por exemplo, a norte-americana), as flutuações de preços e as oscilações da demanda internacional atingiriam seriamente a economia daquela província.
Mais recentemente, a certeza de que a economia brasileira daquele século se restringia apenas e tão somente à monocultura exportadora vem sendo contestada por investigações que realçam a produção e o comércio internos. No caso da Balaiada, análises consideram que as questões enfrentadas pela agricultura não seriam as razões exclusivas que conduziriam ao movimento. Mesmo sem dados estatísticos precisos, quanto ao volume da produção entre 1835 até 1840, documentos que registraram as exportações ou os valores sobre o imposto cobrado pela comercialização do algodão informam que antes do conflito ser deflagrado não ocorrera uma queda importante na produção.
Inúmeras e distintas adversidades aconteciam nos setores de subsistência assim como no mercado interno de alimentos. Situações que, em épocas e circunstâncias diversas, atingiriam as regiões brasileiras motivando crises e revoltas. Todavia, mesmo levando em conta esses fatores não é possível descartar a importância política que o setor exportador representava. Muito menos a inegável e expressiva receita gerada pelos impostos fixados pelo governo central. A estrutura administrativa do Império dependia especialmente da arrecadação obtida pelas exportações, como a da agricultura algodoeira.
Por outro lado, permanecia inalterada a utilização em larga escala da mão de obra escrava que impulsionava a produção nos latifúndios. A escravidão, mesmo que sem uniformidade e de modo desigual, derramava-se pelas províncias imperiais quer no espaço urbano quer no rural. Havia, também, uma população “civilmente livre, mas economicamente e politicamente dependente”, ensina o historiador José Murilo de Carvalho.
Lado a lado?
A Balaiada que eclodiu na província do Maranhão, entre os anos de 1838 e 1841, foi uma revolta de conotação popular que durante um tempo colocou lado a lado grupos sociais diversos, com vontades específicas e singulares. Entre eles, estavam indivíduos que compunham as camadas sociais mais humildes, como sertanejos pobres (representados por vaqueiros, pequenos artesãos, comerciantes e lavradores), índios e escravos fugidos.
Mesmo sendo formada, em sua maioria, por indivíduos provenientes de grupos diferenciados, aconteceria, como em outras mobilizações de classes, sinaliza a historiadora Sandra Regina Rodrigues dos Santos, uma “apropriação ideológica do movimento” por parte das forças políticas liberais que, interessadas em defender os seus interesses, utilizariam “a força da Balaiada”. Contudo, quando o movimento assume um caminho radical “estes mesmos liberais apresentam-se como não tendo nenhuma afinidade com os balaios e colaboram com a repressão”.
A Balaiada, mesmo reunindo aspirações heterogêneas, contraditórias e diversificadas, apresenta matizes que definem a “sua natureza sertaneja”, pondera a historiadora Maria de Lourdes Monaco Janotti. Seus aspectos sociais (e recorrentes) interligam-se à pobreza e à opressão que a população maranhense, marginalizada, experimentava.
As disputas: “Bem-Te-Vis e Cabanos”
No Maranhão, como no Grão-Pará, o processo de reconhecimento da independência política não acontecera de forma pacífica. Apesar do Sete de Setembro, a realidade das camadas sociais mais humildes não se modificara. Prosseguiam excluídas e afastadas do poder político e econômico. Durante o período regencial, a província maranhense foi marcada por disputas entre duas correntes políticas que, conforme prática frequente naquela época, se revezavam no poder. Existiam os “bem-te-vis” – liberais que se opunham aos governistas – e os conservadores – pejorativamente chamados de “cabanos”, termo que se referia, de acordo com a historiadora Magda Ricci, aos “homens que viviam em casas simples, cobertas de palha”.
As tentativas dos grupos para permanecerem no poder, impondo suas ideias com intensidade e virulência, levou o Maranhão a se transformar em um palco onde aconteciam disputas políticas e eleitorais – essas repetidamente fraudulentas. Tais enfrentamentos, em busca do mando e do prestígio, repercutiam nas publicações que circulavam na província, saturadas de acusações, parte a parte, de corrupção e/ou abuso de autoridade.
A alternância no poder por lá em nada divergia do que ocorria nas demais províncias imperiais. Tal rotatividade geralmente era seguida, ou até mesmo precedida, por choques entre os “bem-te-vis” e os “cabanos”. As constantes e rotineiras disputas políticas, sempre em busca do poder, do mando e do prestígio, aconteciam com intensidade e virulência na imprensa local.
O grupo “bem-te-vi” teve seu nome inspirado no jornal O Bemtevi (grafia original), fundado por Estevão Rafael de Carvalho e que circulava toda a semana, embora sem dia certo, sempre anunciado com foguetório. Seus principais representantes eram elementos da população urbana que se opunham às práticas, entendidas como “abusivas”, tomadas pelos proprietários de terras e pelos comerciantes portugueses.
A venda do jornal acontecia pelas ruas de São Luiz; uma novidade para a época, já que as publicações eram adquiridas diretamente nas redações ou recebidas em casa.
Consta que o jornal era comercializado por um personagem conhecido na cidade com o nome de Basílio, que possuía alguma deficiência visual. Saía, então, anunciando e recitando os seguintes versos: “Compra, compra minha gente /O Bem-te-vi/Gazetinha tão bonita /como meus olhos nunca viram! / Compra, compra minha gente / P’rá glória do Maranhão! / Tem versos apimentados... /Coroatá, sendy, mamão! /Dous vinténs apenas custa /Tão irá p’ra mão”!
O jornal O Bemtevi não teve longa duração. Encerrou sua circulação, segundo o historiador Nélson Werneck Sodré, após 31 números, em 6 de outubro de 1838, o que gerou críticas dos adversários: “O Bemtevi cessou seu canto às vésperas das eleições. Ao explodir a revolta, não se ouve uma palavra, de apoio ou de condenação de Estevão Rafael de Carvalho, refugiado em Viana, sua cidade Natal”.
Os enfrentamentos entre “bem-te-vis” e “cabanos” agravaram-se após a votação da chamada Lei dos Prefeitos, que aconteceu durante o governo regencial do político “regressista” Pedro de Araújo Lima, de 1838 a1840. A lei concedia autonomia local aos presidentes das províncias, pois ganhavam o privilégio de nomear os prefeitos municipais com poderes que incluíam o de autoridade policial. Como naquele momento o grupo dos “cabanos” estava no poder, resultou uma aberta perseguição aos “bem-te-vis”.
É importante ressaltar que, entre os anos finais do período regencial e o início do governo pessoal de D. Pedro II, aconteceu o chamado “Regresso Conservador” que mesmo encontrando obstáculos e resistências abriria caminho para o restabelecimento de leis centralizadoras, efetivadas por medidas como a Lei de Interpretação do Ato Adicional (1840), a Reforma do Código do Processo Criminal (1841) e a Lei de Restabelecimento do Conselho de Estado. Para os historiadores Edilaine C. Mendonça e Lupercio Antonio Pereira, embora “entre os próprios contemporâneos da política imperial, as interpretações sobre esse processo sejam divergentes e contraditórias, o programa dos conservadores responsáveis pela obra do ‘regresso’ consistia em reforçar a autoridade monárquica”. A liderança regressista acreditava que, restabelecendo a centralização político-administrativa afastaria os riscos da “anarquia”, que entendia reinar no período regencial, e as ameaças à unidade territorial.
Estudiosos mencionam outros aspectos que pertencem ao contexto histórico maranhense quando o movimento eclode. A província, especialmente nas regiões interioranas, vivenciava tempos agitados. Situações como prisões indiscriminadas, trabalhos forçados e recrutamentos indistintos para compor as forças militares se disseminavam. A insatisfação social avultava entre as camadas populares, incluindo os escravizados. Conforme aponta o historiador Arthur César Ferreira Reis, “milhares de negros que fugiam de maus-tratos dos senhores aquilombavam-se nas matas, de onde saíam para surtidas rápidas e violentas sobre propriedades agrárias”.
Justamente as dificuldades de sobrevivência das camadas populares, as vidas miseráveis impostas aos escravos, além das cisões no interior dos setores dominantes, criaram pontos de toque entre esses indivíduos. No decorrer da Balaiada, a aproximação ganha espaço – situação vista como grave e preocupante para as autoridades constituídas. Adiante, tal cenário seria estrategicamente reprimido e desarticulado pelas forças comandadas por Luís Alves de Lima e Silva.
“O Balaio chegô”
Tradicionalmente, de acordo com documentos e grande parte da historiografia que trata da Balaiada, o movimento começou no Maranhão, em 1838, prosseguindo até meados de 1841 pelo Piauí e Ceará. No dia 13 de dezembro, o vaqueiro Raimundo Gomes, o Cara Preta, conduzindo uma boiada pertencente à fazenda do Padre Inácio Mendes (“bem-te-vi”) alcançou a Vila da Manga de Iguará, situada na região oriental daquela província. Quando chegou à localidade, José Egito, cabano que administrava a vila, determinou o recrutamento de membros da comitiva de Raimundo Gomes. Também ordenou a prisão do irmão do vaqueiro, acusado de assassinato. Naquela época, o recrutamento, efetivado pelas autoridades constituídas, era obrigatório e extremamente impopular. Recaía sobre a população desfavorecida de recursos que a qualquer momento era obrigada a servir às forças oficiais. Quando isso acontecia, os homens livres e pobres, afastados da possibilidade de obter recursos para sobreviverem, experimentavam enormes sacrifícios. As dificuldades se multiplicavam, germinado tensões e resistências pelas províncias imperiais.
Raimundo, inconformado com as ordens, invadiu a cadeia pública local libertando seu irmão e outros aprisionados. Historiadores consideram que ações como essa eram frequentes no interior maranhense. Também eram habituais, como forma de reação, os assassinatos e as fugas dos recrutados para a Guarda Nacional. Nesse contexto, os guardas não reagiram ao ataque: aderiram. O movimento ampliou-se e os enfrentamentos espalharam-se por toda a província.
Os revoltosos conhecedores do sertão – área composta por chapadas despovoadas, faixas territoriais incultas e distantes dos centros urbanos litorâneos – ocuparam um expressivo espaço dessa região. Para os balaios, tal familiaridade representou uma vantagem, pois estrategicamente atacavam de surpresa, com habilidade, agilidade e mobilidade.
O movimento, simultâneo no Piauí, ampliou-se. Os enfrentamentos generalizaram-se. Historiadores registram que em pouco tempo ganhou autonomia, tornando-se um movimento das massas sertanejas. Por onde passava, Raimundo Gomes ganhava seguidores, incluindo escravos foragidos, que organizavam quilombos como o de Lagoa Amarela liderado pelo negro Cosme. Conhecido como “Imperador, Tutor e Defensor das Liberdades Bem-te-vis”, Cosme chegou a comandar aproximadamente três mil escravos fugidos a quem, segundo o historiador Caio Prado Júnior, “vendia a seus companheiros títulos e honrarias”.
Ao grupo, juntou-se Manuel Francisco dos Anjos Ferreira que, devido a seu ofício, acabaria emprestando seu nome ao movimento. Não há concordância quanto às razões que teriam conduzido o “Manuel Balaio” a participar do conflito. Alguns falam em vingança contra um soldado que atentara contra a sua filha; outros revelam que o motivo foi evitar o recrutamento forçado de seus filhos.
Os balaios se movimentavam atacando fazendas e libertando escravos. Enfrentamentos se espalham alcançando as províncias vizinhas do Piauí e do Ceará. Batalhas renhidas são travadas, com os rebelados conseguindo algumas vitórias. Em 1839, tomaram a Vila de Caxias, a segunda cidade do Maranhão em importância, organizando um Conselho Militar, resultado de uma assembleia entre seus líderes que admitiu elementos “bem-te-vis” da cidade. Pelas ruas ouvia-se: “O Balaio chegou!/ O Balaio chegou./ Cadê branco!/ Não há mais sinhô!”
Esse conselho tomou medidas militares e providências de emergência como enviar uma delegação à capital São Luís, com a finalidade de entregar ao presidente da província uma proposta para que liberasse, sem resistência, a sede do governo maranhense. Essa medida, aparentemente, indicava as aspirações dos “bem-te-vis”. Havia também outras instruções, como anistia para os revoltosos, revogação da Lei dos Prefeitos, pagamento das forças rebeldes, expulsão dos portugueses natos, diminuição de direitos dos naturalizados e instauração de processo regular para os presos detidos nas cadeias públicas.
O governo do Maranhão, não aceitando as condições dos revoltosos, solicitou auxílio ao Rio de Janeiro. Em 1840, o Coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro Barão de Caxias, foi nomeado como o novo presidente da província, acumulando o comando das armas. De acordo com a historiadora Maria Januária Vilela Santos, o movimento “radicalizou-se aprofundando as diferenças sociais entre seus próprios componentes”. Sem unidade, com muitas divergências entre os seus líderes, sofreu ainda o afastamento dos “bem-te-vis”, que após tentarem tirar vantagens do movimento, dele se afastaram, aderindo à reação, preocupados com a radicalização das camadas mais pobres da população que assumiram a liderança da revolta.
Caxias entrou no conflito à frente de aproximadamente oito mil homens, contando com o apoio dos grupos liberais e conservadores. Inicia-se uma violenta repressão.
Documentos oficiais registram a proclamação, contendo o olhar das forças oficiais, feita pelo Comandante ao assumir as suas funções, em 7 de fevereiro de 1840: “Maranhenses, venho partilhar de vossas fadigas e concorrer quanto em mim couber para a inteira e completa pacificação desta bela parte do Império. Um punhado de facciosos, ávidos de pilhagem, conseguiu encher de consternação, de luto e de sangue vossas cidades e vilas! (...) Contudo, graças à Providência, as vitórias até hoje por eles alcançadas, começam a diminuir diante de vossas armas. Mais um esforço e a desejada paz virá curar os males da guerra civil (...) Maranhenses, mais militar do que político, quero até ignorar os nomes dos partidos que por desgraça entre vós existam. Deveis conhecer a necessidade e as vantagens da riqueza e da prosperidade dos povos. E confiando na Divina Providência que por tantas vezes nos tem salvado, espero encontrar em vós, maranhenses, tudo o que for necessário para o triunfo de nossa causa”.
Repressão, rivalidade, traição, prisão e tortura
Aproveitando-se habilmente das rivalidades entre os líderes balaios, Caxias enfrentou os rebeldes espalhados pelo imenso espaço sertanejo. Calcular com precisão a quantidade de envolvidos não é simples e carece de precisão, devido à mobilidade daqueles que participavam do conflito. De acordo com números recolhidos em documentos oficiais, seriam em torno de 11 mil no Maranhão e entre 6 e 8 mil no Piauí. Tal aproximação apenas é possível tomando como referência os dados assinalados pela repressão – mais de seis mil mortos e centenas de prisioneiros.
A repressão atuou violentamente contando com recursos enviados pelo governo imperial. Os redutos foram invadidos e combates aconteceram corpo a corpo, de acordo com o entendimento de inúmeros historiadores, “típicos de uma guerra civil”. As forças militares, em correspondências oficiais, descreveram a apreensão de planos de ataque, panfletos e proclamações, embora nada disso tenha sido encontrado. Os momentos derradeiros da Balaiada foram marcados pelas rivalidades entre os líderes balaios, por traições, deserções, prisões, torturas e assassinatos atestados nos registros produzidos pelas forças oficiais.
No ano seguinte, 1841, um decreto imperial concedeu anistia aos revoltosos sobreviventes. Consta que o comandante Lima e Silva considerou o Maranhão pacificado apenas quando Cosme foi aprisionado. Posteriormente (setembro de 1842), ele seria enforcado em praça pública, como exemplo de punição, na Vila de Itapicuru Mirim. Ao entregar o governo do Maranhão a seu substituto, em 13 de maio de 1841, Caxias diria: "Não existe hoje um só grupo de rebeldes armados, todos os chefes foram mortos, presos ou enviados para fora da Província”...
A repressão à Balaiada marcou o início da chamada "política da pacificação", pela qual Caxias sufocou as agitações que ocorreram durante o Império. Porém, vale observar que o processo de consolidação do poder é bastante complexo e que não pode ser garantido apenas pelo cargo ou pela força desmedida. No dizer da historiadora Gabriela da Silva Ramos Fernandes, “uma sociedade não se mantém, apenas pela imposição, assim como um poder não se estrutura apenas pela violência”. É preciso ir além, modificando os comportamentos coletivos como um todo.
Que a sociedade enxergue com outras lentes, condutas e procedimentos, para que surjam caminhos e estratégias capazes de convencer e de mobilizar as populações para a necessidade das mudanças e da introdução de novos valores.
Conclusões
O silêncio rompido
O historiador Marc Bloch alerta que, ao se consultar uma documentação objeto de pesquisa, se dê atenção especial ao que o texto “nos dá a entender sem ter a intenção de dizê-lo”. Porém essa não é uma tarefa simples, diante da necessidade de desvincular os fatos das versões e dos testemunhos oficiais contidos nos relatórios, decretos, inquéritos policiais ou judiciais. Para reconstituir, por exemplo, o mundo em que viveram os “balaios”, (incontáveis vezes iletrados), a pesquisa se estende, já que a memória do universo social das camadas populares é pouco documentada, aparecendo, e quando aparece, esmaecida em termos de documentação.
A tarefa proposta como uma forma sutil de romper o silêncio, que paira sobre movimentos como o da Balaiada e seus participantes, é a de consultar fontes como sentenças, confissões, lendas e cancioneiros, buscando pistas, desvinculando-as da visão oficial. E conduzir o olhar na direção do que “pretendeu ser dito”. De acordo com as palavras da historiadora Claudete Maria Miranda Dias, no teatro maranhense, aconteceria uma ação “deliberada das elites para abafar um dos mais importantes movimentos sociais daquele século”, prática que pode ser percebida nas localidades que foram palco dos enfrentamentos onde “não há qualquer referência a um passado que poderia orgulhar seus moradores”.
Porém a pesquisa apoiada na memória oral, recolhida no Maranhão, abre possibilidades de resgatar o passado como uma janela que oferece “uma perspectiva privilegiada sobre a realidade concreta da escravidão nessa província”, considera o historiador Matthias Röhrig Assunção. Se, a princípio, constituem histórias do passado, compartilhadas por um número reduzido de descendentes, revisitá-las por meio da oralidade, é trazê-las para a cena principal. Conduzi-las com as suas sutilezas e ambiguidades detalhando o múltiplo cotidiano significa permitir a reconstrução da história dos balaios e da Balaiada.
E a função do historiador, segundo Edward Hallett Carr, “não é amar ou emancipar-se do passado, mas entendê-lo como chave para a compreensão do presente”.
Reflexões
“A crença no futuro”?
Consultando documentos que registram falas de ministros e artigos publicados na imprensa no alvorecer da segunda metade do século XIX, observa-se qual era o sentimento predominante daquela época: “a crença no futuro do país, na sua transformação, baseada no desenvolvimento material que superava a ordem arcaica e estagnante”, segundo palavras de Francisco Iglésias. O historiador refere-se às mudanças, às melhorias materiais conseguidas por meio da utilização de recursos financeiros que fizeram surgir ferrovias, fundição de ferro e de bronze, serralherias, estaleiros, companhias de bonde e de iluminação, instituição bancária e o telégrafo submarino que colocou o Brasil em contato com países europeus. Em tempos em que sopravam ventos favoráveis ligados à economia, tudo parecia indicar que uma realidade próspera se configurava a partir da década de 50,“símbolo do anseio renovador (...) ponto de referência na história da construção de um Brasil mais rico e afirmativo”.
Na prática, a face de um tempo renovado, apresentada por meio dos múltiplos discursos, não seria compartilhada pela população como um todo. Excluídas dessas transformações, estavam pessoas comuns – homens e mulheres – que participaram como protagonistas dos numerosos movimentos populares acontecidos em diversas províncias brasileiras. Indivíduos que, em meio a impasses e a resistências foram, segundo a historiadora Claudete Maria Miranda Dias, “praticamente apagados, para dar lugar à história ou à ‘versão falsa que oculta deliberadamente as lutas e os conflitos”.
Entretanto, por meio de narrativas como essa, o passado da Balaiada é revisitado trazendo o conflito para a cena principal. Então é ressaltado que seus componentes – os balaios – “índios, negros, mestiços pobres e desfavorecidos não ficaram apáticos olhando o desenrolar da política como meros observadores, como se a política fosse algo exclusivo das elites e/ou do âmbito do Estado, construindo-se fora do alcance de suas mãos, e nem delas participaram em menor grau ou importância”, completa a historiadora Léa Maria Carrer Iamashita. As camadas populares das províncias do Maranhão, do Piauí e do Ceará participaram do movimento contra uma ordem, entendida por historiadores, como sendo predominantemente elitista e autoritária e que vigorou no Brasil desde o início da ocupação portuguesa.
E quando os milhares de balaios pegaram em armas, nos anos finais do Período Regencial, agindo com violência e cometendo crueldades inegáveis, segundo consideram estudiosos, seus atos devem ser interpretados como consequências e não causas da Balaiada.
Nesse sentido, vale relembrar as palavras que o historiador inglês John Edward Christopher Hill registrou na obra O Mundo de Ponta-Cabeça – Ideias Radicais Durante a Revolução Inglesa de 1640: “A história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passado não mude, o presente se modifica; cada geração formula novas perguntas ao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revive distintos aspectos das experiências de suas predecessoras”.
* Jeanne Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O Mochileiro do Futuro.
Bibliografia:
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