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Canudos sob a ótica de Mario Vargas Llosa
05 Janeiro 2010 | Por Carolina Bessa
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GUERRA DO FIM DO MUNDOFascinado pela obra-prima Os Sertões, de Euclides da Cunha, o escritor peruano Mario Vargas Llosa criou, em 1981, um romance que conta, de maneira ficcional e por meio de personagens caricatos, a Guerra de Canudos. Seu livro A Guerra do Fim do Mundo propõe-se a falar da realidade brasileira a partir dos fanatismos. Sem o intuito de traçar um grande retrato do conflito, como o fez o escritor brasileiro, Vargas Llosa optou por utilizar-se da fantasia para resgatar historicamente esse episódio da história brasileira, que se assemelha bastante à trajetória de conflitos na América Latina, de miseráveis contra a elite política e econômica. Para desvendar um pouco a relação entre A Guerra do Fim do Mundo e Os Sertões, Rinaldo Fernandes, doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Paraíba, explica as perspectivas de Euclides e Vargas Lllosa em suas narrativas.

Quais são as características mais marcantes de Os Sertões?

A importância do livro reside sobretudo no fato de Euclides da Cunha ter focalizado de perto o problema das nossas disparidades sociais, regionais. Euclides não só denunciou um crime (o do Exército contra os canudenses), mas fixou um problema que está na formação da sociedade brasileira – o do desprezo histórico às populações interioranas do país, que hoje se deslocam para virar miseráveis nas grandes cidades. O livro é, nesse sentido, uma das mais importantes interpretações do Brasil – e feita de forma crítica, incisiva, logo que se inicia a nossa República. Além disso, é necessário considerar a questão do estilo literário de Euclides. É visível em Os Sertões uma mistura de épico, lírico e dramático. Portanto, além de obra de ciência, ficou como obra literária.

Em que aspecto A Guerra do Fim do Mundo difere de Os Sertões?

A Guerra do Fim do Mundo é uma obra de ficção. Sendo assim, o autor, Mario Vargas Llosa, teve a liberdade de inventar situações e personagens. A subjetividade destes, o mundo psicológico, ganha um realce que certamente não tem em Os Sertões, que se baseia em dados científicos jornalísticos de Euclides. Vargas Llosa, mesmo que tenha se baseado em uma grande massa de documentos para escrever A Guerra do Fim do Mundo, fabulou para produzir seus enredo e personagens.

Vargas Llosa conseguiu traçar um retrato fiel de Canudos?

Ele se amparou numa grande massa de documentos, além de, em seu romance, travar um diálogo de perto com Os Sertões. No enredo, são reconstituídas as quatro expedições militares, as figuras principais que estiveram à frente delas, como o coronel Moreira César. O Conselheiro, embora caricato, é outro tipo que aparece com certos traços parecidos com os do Conselheiro real. O ambiente histórico e social da guerra é muito bem resgatado, a religiosidade dos sertanejos, as intrigas políticas, o poder e a visão de mundo dos coronéis. Claro: há um viés caricatural no romance, não só do Conselheiro ou ainda de Moreira César, mas, dando-se os devidos descontos, o resgate histórico feito por Vargas Llosa é magistral. O Barão de Canabrava é um personagem extraordinário. Poucos romances conseguiram retratar tão bem a figura de um coronel nordestino. Poucos conseguiram configurar com tanta pertinência a questão do mando e a do jogo político para a manutenção do statu quo. O Barão de Canabrava, para mim, é o personagem central, o mais bem elaborado.

Que aspectos destacaria na narrativa do brasileiro?

Em Os Sertões, na parte da Luta, são reaproveitadas as reportagens que Euclides fez como correspondente de guerra. Reunindo a parte da Luta com a da Terra e a do Homem, temos uma obra híbrida, um misto de ciência e literatura. O caráter narrativo se constitui mais propriamente na parte da Luta. Euclides é um narrador equilibrado, muito atento, que busca ser fiel aos fatos, apresentando, sempre de um ângulo próximo, os dois lados da guerra. E emite, fiel a seus princípios e com profundo senso de justiça, suas opiniões acerca da guerra.

E no romance peruano?

Naquilo que diz respeito aos sentidos mais profundos da guerra, o livro de Vargas Llosa, apesar de ser rico e de valer muito a pena ser lido, tem certos equívocos. Não penetra tão fundo na questão como o livro do brasileiro. Euclides entendeu e sentiu tanto o que estava em jogo que, republicano convicto, terminou optando por uma crítica radical ao modo de ser de nossa República. Portanto, Euclides é exemplo de intelectual que soube ter o distanciamento e a sabedoria necessários para, no momento próprio, operar uma autocrítica.

Como Antônio Conselheiro é visto nas duas obras?

Em Euclides, é um personagem mais complexo. Um místico com um enorme poder de liderança, que pregava um catolicismo primitivo e que fundou uma comunidade com fins assistencialistas. Vejo em Vargas Llosa uma caricatura do Conselheiro. O narrador de A Guerra do Fim do Mundo pinta um líder religioso fanático – e fica a ideia, no romance, de que o fanatismo em si explica a dimensão complexa dessa figura. O curioso é que o romancista, em uma entrevista em 1986, revelou ter um grande respeito pelo Conselheiro, chegando a considerá-lo um gênio.

Euclides da Cunha foi para Canudos com uma visão preconcebida, mas acabou se comovendo com a luta dos sertanejos. Essa mudança é apresentada no livro?

Certamente. Euclides reviu sua interpretação inicial do conflito quando esteve em Canudos. Para a ensaísta Sara Castro Klaren, em Os Sertões “o ponto de vista nacional” é o que predomina. Pelo que se depreende da posição da ensaísta, o narrador de Euclides da Cunha, embora denunciando as loucuras de uns e de outros (jagunços e militares), e embora ainda demonstrando uma certa simpatia pela comunidade de Canudos, termina mesmo se identificando com o ponto de vista republicano, de defesa da ordem institucional. Tendo a concordar com a ensaísta. A crítica que Euclides faz não é à República em si, mas à face que ela estava assumindo no Brasil. Sua crítica à nossa República, por exemplo, é posta de forma incisiva e inesquecível na página final de Os Sertões: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”.

Mario Vargas Llosa, em seu livro, enfoca a crítica aos coronéis do sertão, que exploram o povo da região. Euclides e Llosa têm visões diversas sobre isso?

A crítica de Vargas Llosa aos coronéis e a seu mando se expressa sobretudo na figura do Barão de Canabrava. No entanto, esse personagem é o único no romance do qual não é feita uma caricatura. É o único que não é visto como fanático. Já discorri sobre isso em um ensaio que está no livro O Clarim e a Oração: Cem Anos de Os Sertões, que organizei em 2002.

Como Vargas Llosa usa da caricatura para retratar os personagens?

Digo, em certo momento desse ensaio: “É interessante observar como Vargas Llosa, tratando no romance de vários ‘fanatismos’ através de tipos como o Conselheiro, o Coronel Moreira César e Galileu Gall, dá um espaço importante para um personagem que, em quase todos os momentos em que aparece, é expressão da própria lucidez. Com efeito, é essa a principal característica do Barão de Canabrava – espécie de mentor intelectual dos monarquistas, dono de uma poderosa percepção política e de uma ironia que às vezes beira o cinismo. A lucidez política desse personagem de fato destoa do fanatismo dos demais". De todo modo, gosto da construção desse personagem.

Essa forma de Vargas Llosa apresentar os personagens destoa bastante, então, da visão mais imparcial de Euclides?

Euclides mostra os dois lados em guerra, os sertanejos e os militares, em um ângulo próximo ao dos fatos, mostrando o jogo de interesses por trás do conflito. E mais: Euclides encaminha seu relato para a denúncia de um “crime” – aquele cometido pelo Exército contra os canudenses. Vargas Llosa entende que a guerra foi um equívoco, que foi uma disputa operada por “fanatismos” – tanto por parte de militares como de sertanejos. Não é à toa que ele põe em seu romance a figura, igualmente fanática, de Galileu Gall, que expressa uma visão da esquerda radical. Vargas Llosa, aqui, embora resgatando uma guerra ocorrida em 1897, tem uma preocupação com a contemporaneidade, em mostrar os supostos equívocos de uma esquerda brutal, violenta, como a do Sendero Luminoso em seu país, o Peru. Mas o romance, nesse sentido, além de condenar os fanatismos de esquerda, também condena os de direita, as ditaduras militares.

Em que momento Mario Vargas Llosa prestou homenagem a Euclides da Cunha?

O jornalista míope, personagem de A Guerra do Fim do Mundo, remete à figura de Euclides da Cunha, com certa precisão. Em minha tese de Doutorado, disse: “Quando é correspondente de guerra, indo com a expedição do coronel Moreira César, o jornalista termina amparado por Jurema, ex-mulher do rastreador Rufino, e um anão de um circo já arruinado. É amparado porque, com os bombardeios, os óculos se rompem – e o jornalista tateia, cego". Assim, ele terá uma visão dos acontecimentos a partir, principalmente, do que Jurema lhe descreve – já que a sua visão ficou "estilhaçada". Ora, o míope só enxerga o que está bem próximo dele. A viagem do jornalista, assim, alegoriza a aproximação que tornaria possível ver/explicar. Mas, ao chegar a Canudos, os óculos se quebram – e o jornalista curiosamente torna-se um míope que está perto sem poder ver. O narrador, ao chamá-lo de míope, depõe ironicamente contra esse personagem – julgando-o incapaz de interpretar a guerra. Euclides interpretou bem a guerra, não teve dos fatos uma visão “míope”. Foi fiel aos seus próprios princípios.

Vargas Llosa pode ter se interessado pelo livro de Euclides pelo fato de que remete à realidade latino-americana? Por que seu interesse?

Para, além de produzir um romance histórico, gênero com grande tradição na literatura hispano-americana, representar, de algum modo, a realidade contemporânea da América Latina, com “fanatismos” de esquerda e de direita. Mas é claro que os países latino-americanos passaram e passam por problemas comuns, sofrendo males parecidos – pobreza, corrupção, migração interna, violência, etc. Vargas Llosa vê Os Sertões como um livro de interpretação, não só do Brasil, mas da própria América Latina. Ele chega a afirmar sobre o livro de Euclides: “Creio que ele vale por muitas coisas, mas sobretudo porque é como um manual de latino-americanismo, quer dizer, neste livro se descobre primeiro o que não é a América Latina. A América Latina não é tudo aquilo que nós importávamos. Não é tampouco a Europa, não é a África, nem é a América pré-hispânica ou as comunidades indígenas – e ao mesmo tempo é tudo isso mesclado, convivendo de uma maneira muito áspera e difícil, às vezes violenta. E de tudo isso resultou algo que muito poucos livros antes de Os Sertões haviam mostrado com tanta inteligência e brilho literário”.

Por que seria importante que os professores lessem os dois livros?

Pelo resgate que ambos fazem da Guerra de Canudos, talvez o conflito mais importante de nossa história. O livro de Euclides, especialmente, por caracterizar esse tipo fundamental da formação da sociedade brasileira – o sertanejo. O romance de Vargas Llosa é certamente instrutivo. Educa, ao mesmo tempo que dá prazer, é agradável de ler, move a imaginação do leitor. Os dois livros, em síntese, trazem informações históricas extremamente importantes para adultos e jovens estudantes.

Em O Clarim e a Oração: Cem Anos de Os Sertões, livro organizado por você, o que ficou mais expressivo sobre Canudos, um século depois do conflito?

Ele traz um enfoque múltiplo de Os Sertões. O clássico euclidiano é visto sob o ponto de vista de historiadores, sociólogos, escritores, jornalistas, críticos literários; há entrevistas com moradores de Canudos. Os textos do livro, alguns ensaios de grande valor, de grande força interpretativa, terminam tendo em comum a reverência à obra (especialmente) e à figura de Euclides da Cunha. E o reconhecimento de que Canudos foi um ato de barbárie do Exército contra uma comunidade de pobres. Enfim, um crime, como propugnou Euclides. 

 
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