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Alfabetização e analfabetismo funcional na Rede Municipal: uma radiografia
22 Março 2017 | Por Márcia Pimentel
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foto crisitna 2 Cópia
Cristina de Lima, gerente de Alfabetização da SMEEL. Divulgação

O combate ao analfabetismo funcional é um dos grandes desafios da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer. Para aprofundar o assunto e entender por que tantos alunos que estudam ou estudaram na Rede Municipal podem ser enquadrados como analfabetos funcionais, a MultiRio conversou com a gerente de Alfabetização da SMEEL, Maria Cristina de Lima. Na entrevista, ela combate os clichês que relacionam aprendizagem com a situação socioeconômica, cultural e familiar da criança, e chama escola e professores à responsabilidade de ensinar todos os alunos a ler e a escrever com fluência e autonomia.

Portal MultiRio: O secretário de Educação, César Benjamin, afirmou que um de seus grandes focos de trabalho, no momento, é o combate ao analfabetismo funcional. Você pode definir o que é isso e a partir de qual idade uma pessoa pode ser considerada analfabeta funcional?

Cristina de Lima: O conceito de analfabeto funcional é bastante antigo. Ele apareceu na Segunda Guerra Mundial, quando as forças armadas americanas começaram a perceber que seus soldados não conseguiam ler os manuais. O conceito foi mudando através do tempo, mas quem o cunhou de forma mais pontual, em razão de suas ações no mundo, foi a Unesco, que considera que o analfabeto funcional é a pessoa que sabe ler e escrever seu próprio nome e frases simples, que efetua cálculos básicos, mas é incapaz de interpretar um texto e usar a leitura e a escrita em suas atividades cotidianas. O termo é aplicado a partir da juventude, basicamente quando o sujeito passou por um processo de escolarização e já saiu do Ensino Fundamental.

Identificamos de maneira muito forte que, normalmente, o conceito de analfabeto funcional é relacionado às populações mais empobrecidas da sociedade, quando, na verdade, pode ser direcionado a qualquer sujeito jovem ou adulto com tais características. É interessante observar que o uso pleno da leitura e da escrita não é comum a todas as profissões. Em várias delas essa necessidade não é posta. Diversos profissionais especializados que ocupam postos avançados dentro de uma empresa poderiam ser enquadrados, se a gente quisesse, dentro da categoria de analfabeto funcional pela não fluência, principalmente, da língua escrita.

Mesmo que a língua escrita seja um instrumento de valor significativo para a sociedade, não fazemos uso dela com frequência, da forma como achamos que deveria ser.

PM: Você, então, acha que o domínio da língua escrita e falada é mais uma questão de uso do que de formação da escola?

CL: Penso que são as duas coisas, mas é importante ter clareza de que a função social da escola é educativa. E isso tem que ser cumprido. Ela tem que ensinar a ler e a escrever com fluência e o modo como ela faz isso precisa ser repensado. Existe algo que é do momento inicial, do primeiro ano de aprendizagem: a compreensão da lógica do sistema linguístico e como se faz uso dele. Mas esse processo não pode parar ali. Precisa ser retomado, aprofundado e complexificado ao longo dos anos de escolaridade. A escola deve pensar no trabalhão que tem a fazer para que a criança não vire um analfabeto funcional ao longo dos nove anos de Ensino Fundamental.

PM: O currículo escolar não resolve isso?

CL: O currículo escolar na nossa Rede é bastante organizado e estruturado. Entende que há os momentos iniciais da aprendizagem e que, ao longo dos anos, a escola vai precisar cumprir vários outros conhecimentos para que o uso da leitura e da escrita seja pleno e fluente.

Mas, para superar a existência de analfabetos funcionais dentro da escola, temos alguns desafios. O primeiro deles é o investimento contínuo na formação de professores. Não existe, na nossa categoria profissional, um sujeito especializado em alfabetização. A formação inicial de um professor do Ensino Fundamental é em Pedagogia. Ele sai da faculdade qualificado para atuar como pedagogo e como professor da Educação Infantil, dos anos iniciais e da Educação de Jovens e Adultos. A formação é diversificada e não especializada. Quando assume a docência, pode circular entre essas modalidades. É possível que, em um ano, dê aula para o 1º ano e, no outro, para o 5º, até porque a legislação não nos resguarda caso queiramos que um professor lecione apenas para os anos iniciais. Então, é preciso ter algumas estratégias de modo que eles se dediquem exclusivamente a esses anos, como investir na formação do professor alfabetizador, no convencimento, no incentivo, no comprometimento...

Costumo dizer uma coisa que pode parecer estranha, mas percebo isso no senso comum e, muitas vezes, no campo profissional: uma pessoa que aprendeu a ler e escrever é capaz de ensinar outra a ler e escrever. Isso não é válido. Para alfabetizar são necessários conhecimentos específicos de várias áreas, como a Sociologia da Infância, a Antropologia, a Psicologia, a Linguística, a Pedagogia... Também é preciso compreender que a alfabetização não começa e termina nos três primeiros anos. O processo de envolvimento do conhecimento da língua falada e escrita é contínuo e deve ser visto como formador de leitores e escritores. Enfim, é preciso entender que há esse processo contínuo e que o investimento na formação do professor para os anos iniciais é primordial, porque é nesses anos que a criança tem que aprender a lógica de funcionamento da língua.

PM: Quando você fala em processo de formação de leitores e escritores, se refere ao letramento?

CL: Eu prefiro pensar a alfabetização como um processo amplo, profundo e contínuo. Não sinto a necessidade de usar outra terminologia para me referir a isso. Para mim, alfabetizar é ensinar a ler e escrever em sua plenitude. A escola precisa trabalhar isso ao longo dos anos de escolaridade.

Os modos como a escola ensina – ou as metodologias de ensino, como uns preferem dizer - são outra questão a ser repensada. No campo da alfabetização, temos uma tradição muito forte em métodos que foram predominantes até a década de 1970.

PM: Quais são eles?

Metodo SinteticoAnalitico Cartilha2
Esta cartilha foi publicada pela primeira vez em 1916 e teve 185 edições

CL: São os chamados métodos sintéticos e analíticos, que vão desde aqueles que começam com letras e sons - como a silabação, a soletração, o método fônico - aos que trabalham com unidades maiores – como a palavração, a frase, os textos curtos. Esse conjunto de métodos permanece na cultura das escolas. Investir na formação do professor é pensar em novos modos de ensinar a ler e escrever que estejam articulados com as experiências de vida dos alunos, sejam elas com a arte, a cultura, a religião, o samba, o futebol, a família... As crianças, hoje, em nossa cidade, solicitam da gente formas mais atrativas, mais interessantes e mais articuladas com a maneira como a língua funciona e é falada, com as músicas que ouvem...

PM: Esse método já existe e só precisa ser implantado, ou precisa ainda ser pensado?

CL: A partir do início dos anos 1980, quando houve o movimento de redemocratização do país, abriu-se a reflexão sobre outras formas de alfabetização. Tivemos as pesquisas da Emilia Ferreiro, sobre a psicogênese da língua escrita; da Magda Soares, sobre letramento; da Ana Luiza Smolka, sobre a alfabetização na dimensão discursiva; e muitos outros estudos no campo da Linguística, da Sociologia e da Psicologia, que trouxeram novas possibilidades de se alfabetizar. Dentro desse conjunto, tem-se firmado o trabalho com texto no seu sentido alargado - pode ser uma manchete de jornal, uma poesia ou outra coisa -, que não é, necessariamente, uma metodologia, mas uma tomada de posição de mostrar na sala de aula a forma como a língua funciona no modo oral, no modo escrito, nos diferentes materiais (livro, televisão, computador...). Escrever um bilhete para o chefe é diferente de escrever um bilhete para o colega. Então, não se trata apenas de aprender a escrever bilhete, porque para um eu tenho que medir a forma de tratamento, para o outro posso ser totalmente informal.

PM: E isso garante à criança o domínio dos grafemas e das demais estruturas da língua?

CL: Tudo isso depende da formação dos professores. Os investimentos que a Secretaria tem feito nos últimos anos caminham nessa direção. E uma das coisas que vem sendo proposta^s é o trabalho nas diversas dimensões da língua. Na perspectiva mais tradicional, a dimensão mais evidenciada é a relação entre as estruturas fonológica e ortográfica. Essa relação de grafema e fonema é fundamental, mas quando se pensa em trabalho com texto, outras dimensões também são exploradas, como a semântica e a sintaxe. Manga pode ser fruta ou um detalhe da camisa. É preciso ensinar a relação entre fonema e grafema, mas também outros aspectos da língua para dar conta de sua complexidade.

PM: Retomando a questão do analfabetismo funcional: a abordagem dessa complexidade da língua e da linguagem faria com que aqueles soldados americanos da Segunda Guerra entendessem os manuais das forças armadas? 

CL: A autonomia e a fluência na leitura, na fala e na escrita são finalidades do trabalho com texto. A criança precisa entender o que é ler e escrever uma bula ou uma notícia de jornal. Quando se ensina essas diferenças, ela vai entender que na bula, por exemplo, são usados termos técnicos e científicos próprios de um campo específico do conhecimento, e que por isso precisa se organizar de forma distinta da leitura de um jornal. No caso da bula, vai ter que recorrer ao dicionário ou à internet, para entender o significado de várias palavras. Já se o trabalho é com uma notícia, chama-se a atenção para o fato de que o jornal que certo grupo social lê é diferente do jornal que outro grupo social lê. Cada um tem uma configuração, um tom, uma tendência. Uma notícia tem a mesma versão em diferentes jornais? Os pontos de vista das pessoas citadas estão contemplados, ou cada jornal prioriza o ponto de vista de um? É essa diversidade de facetas que o trabalho com texto tenta esclarecer.

PM: Pelo que se pode observar, a alfabetização é uma tarefa bastante complexa. De acordo com o sistema de ensino, ela deve ser feita nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. Esse tempo é suficiente?

CL: Fui aluna da rede pública, nasci e cresci na favela da Maré. Minha infância foi semelhante a da maioria das crianças da nossa cidade e, hoje, atuo na formação de professores. Então, penso que todas as crianças podem aprender a ler e a escrever no primeiro ano. Todas, sem exceção. Não entendo nada de Educação Especial, mas os que entendem dizem que também é possível. Esse tempo, então, é suficiente para aprender a lógica do sistema. É possível haver dúvidas sobre a ortografia? Com certeza. É possível escrever palavras grudadas umas nas outras? Sim, é, mas ela já aprendeu a relação fonológico-ortográfica, já entendeu a lógica da sintaxe, da semântica, da prosódia, que se escreve da esquerda para a direita... O que os anos posteriores precisam fazer? Aprofundar e garantir formas mais sofisticadas desse conhecimento, para que a criança vá conquistando cada vez mais autonomia e fluência da língua.

Talvez nosso grande desafio seja vencer a alfabetização. Precisamos vencê-la para que, a partir daí, com o decorrer dos anos de escolaridade, ela seja plena.

PM: Nas provas de aferição do conhecimento das crianças, feitas pelo IdeRio e pelo Ideb, os resultados, de forma geral, deixam bastante a desejar no Rio de Janeiro. Você já falou sobre a necessidade da formação continuada dos professores, do uso de formas mais adequadas de alfabetização... São apenas esses os desafios efetivos?

CL: Temos uma Rede muito grande. São cerca de 700 escolas com alunos do 1º ao 3º ano, o que dá algo em torno de sete mil professores. Muitos não ficam fixos nesses anos. Então, a escola precisa ter projeto de alfabetização, estratégias e articulação para que o trabalho tenha continuidade de um ano para o outro. Mas nem sempre isso acontece, mesmo com a Secretaria apostando na formação e qualificação do professor.

Também é bom ter em mente que os índices do IdeRio e do Ideb dizem respeito a uma média. Só que também temos excelentes escolas, que fazem excelentes trabalhos.

PM: Como se pode resolver a questão da descontinuidade do trabalho nas escolas?

CL: Talvez tivéssemos que ter mecanismos mais específicos de acompanhamento, desde a eleição do diretor. Talvez, dentro do projeto político-pedagógico, tivéssemos que cobrar um específico para a alfabetização, com o compromisso de continuidade do ensino e de permanência dos professores nos anos iniciais, além da garantia de não deixar nenhuma criança sem saber ler e escrever.

Há também outros fatores que atravessam a vida da escola, que são delicados e precisam ser pensados. Muitas vezes, os professores atribuem a dificuldade do processo aos alunos, à comunidade, às famílias. Em algumas situações, alegam problemas de violência, dizem que as famílias são “assim” ou “assado”... Só que a gente vê escolas localizadas em uma mesma comunidade com desempenhos diferentes. Uma vai muito bem e outra muito mal. Então, esse é um aspecto que precisa ser mais refletido, como a expectativa do professor em relação aos alunos e seu processo de aprendizagem. Se não tem nenhuma ou a expectativa é baixa, provavelmente não tem compromisso de ensinar nem vai ter o empenho necessário. Algumas pesquisas já mostraram que as expectativas com as quais se trabalha interferem na aprendizagem dos alunos, e penso que esse aspecto é bastante significativo.

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Turma de alfabetização (1º ano) da E.M. Prof. Afonso Várzea, em Inhaúma. Foto Hélio Melo, 2013

PM: Sobre os mecanismos de acompanhamento dos projetos político-pedagógicos e de alfabetização: como poderiam ser solucionadom? Há propostas em relação a isso?

CL: A questão é como lidar com posturas e escolhas no serviço público. É uma questão delicada. Às vezes, vejo determinadas coisas que penso: em uma escola privada não faria isso, porque não poderia chegar ao final do 1º ano sem as crianças saberem ler e escrever. Não quero dizer com isso que não há lugares com problemas de violência e insegurança, que não há crianças com necessidades médicas ou psicológicas diferenciadas, mas precisamos ter um melhor controle e acompanhamento dos trabalhos. Não sei dizer, no momento, por meio de quais mecanismos, mas a alfabetização é fundamental para o desenvolvimento do restante da vida escolar da criança. É preciso se pensar em estratégias específicas de controle para esses anos iniciais.

PM: Não é possível imaginar o combate ao analfabetismo funcional sem o fortalecimento da alfabetização. Como o secretário de Educação tem orientado esse trabalho?

CL: Nesse exato momento, com a chegada do novo governo, estamos em fase de transição. O secretário está tendo clareza do trabalho que a Secretaria faz para tomar decisões, mas ele tem dito que a área de alfabetização é importante.

Nos últimos anos, temos procurado desenvolver duas ações específicas: a formação do professor e o acompanhamento dele em sala de aula. Em 2016, com a parceria da MultiRio, fizemos isso com todos os professores do 3º ano. Além de orientarmos o trabalho com texto, tocamos nas práticas ainda muito centradas no professor, que precisam ser deslocadas para a criança.

PM: Pode dar um exemplo?

CL: Quando ensinamos uma criança a ler e a escrever, muitas vezes perdemos de vista que já sabemos fazer isso. Estamos no lugar de quem sabe e corremos o risco de desconsiderar o lugar de quem não sabe. A letra “a”, por exemplo, pode ser grafada de diversas maneiras. Se usar letra cursiva, ela ficará de mãos dadas - como dizemos na escola - com todas as outras da mesma palavra. Já na letra de imprensa, elas ficarão soltas. Eu que sou alfabetizada, sei disso. Mas o aluno, não. Ele pode pensar que as diversas formas de grafia do “a” correspondem a letras diferentes. Às vezes o professor diz: ah, mas eu já ensinei o “a”. Só que o processo de aprendizagem é uma série de idas e vindas e a criança é uma iniciante. É necessário ter mais paciência, diversificar mais as atividades...

PM: Há famílias tradicionalmente letradas e famílias com longa trajetória de analfabetismo. Isso interfere na aprendizagem da criança?

CL: Vou tentar ser bem objetiva, porque essa é uma discussão bem ampla. O que eu acho é que a escola tem a função de ensinar a ler e a escrever. Existe uma grande polêmica sobre essa relação entre o universo cultural familiar e a aprendizagem da leitura e da escrita. Mas podemos pegar alguns exemplos que podem desestabilizar essa ideia, como é o caso do Cartola, considerado semianalfabeto mas compositor de músicas belíssimas, ou como o Adoniran Barbosa, que tem letras que usam formas clássicas da língua. Há também pessoas com alta formação e que se expressam mal na fala e na escrita. Meu pai era analfabeto e, hoje, eu tenho doutorado. Então, essa relação direta é polêmica e me preocupa, porque quem está na escola pública é a população empobrecida da cidade. É preciso ter clareza de que a escola tem que ensinar a criança a ler e escrever na sua plenitude. Antes a escola pública tinha atendimento seletivo, mas agora ela é para todos e precisa ter qualidade. E esse é um dos desafios do trabalho de alfabetização.

PM: Ou seja, a escola tem que encontrar caminhos e meios para alfabetizar as crianças dentro de qualquer realidade socioeconômica e cultural.

CL: Sim. E é possível. Há exemplos dos mais variados, muitas vezes dentro de uma mesma comunidade. Na Maré, por exemplo, temos a E.M. IV Centenário, o Ciep Elis Regina, a E.M. Bahia, na beira da Avenida Brasil... Em algumas escolas o trabalho é de qualidade. Então, por que em outras não é assim? Há mais coisas para se mexer do que esse clichê de que é pobre e favelado, com família desestruturada. Trabalhei na Zona Sul. Lá os pais também eram separados, o namorado da mãe levava o aluno para a escola... Então, por que só as famílias das comunidades são vistas como desestruturadas? Essa relação entre organização familiar e aprendizagem não é dada. Se criarmos isso, não incluiremos milhões de crianças na escola, com o argumento de que são pobres, vivem em favelas e as famílias são isso ou aquilo!

 
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