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A Revolta dos Malês
14 Dezembro 2016 | Por Jeanne Abi-Ramia
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Organizada por africanos escravos e libertos, a Revolta dos Malês deixou Salvador frente a frente com o Islã.
João José Reis (O Sonho da Bahia Muçulmana, na revistadehistoria.com.br)

Vista de Salvador entre 1835-1837 (Fonte: Emerc Essex Vidal/In: São Salvador da Bahia de Todos os Santos vista panorâmica 1835-1837, 1996.)

Considerações

“O vulcão da anarquia”: as preocupações de Feijó

A Revolta dos Malês ocorreu em Salvador, em 1835, quando o Brasil era governado por Diogo Antônio Feijó. Regente entre 1835 e 1837, administrou o Império enquanto o príncipe herdeiro D. Pedro de Alcântara não atingia a maioridade. Desde a Abdicação de D. Pedro I, acontecida no dia 7 de abril de 1831, o Brasil atravessou um período marcado por inúmeras crises políticas e econômicas. O gesto do primeiro imperador provocou um vazio político no país, acirrando as disputas pelo poder.

O período conturbado revelou outros problemas, entre eles o agravamento da situação econômica resultante de um quadro em que o país, perdendo os espaços na concorrência por mercados econômicos, aumentava a dependência das potências estrangeiras. As expectativas quanto ao futuro eram difusas e nubladas. Mesmo diante de tanta instabilidade, a época assistiu à expansão da cultura cafeeira na região do Vale do Paraíba e o aparecimento dos chamados “barões do café”.

No contexto em que as atividades agrícolas ocuparam a cena principal, era fundamental, especialmente para as autoridades e para os grandes proprietários, manter a escravidão e o tráfico negreiro, apesar da pressão internacional como aquela promovida pelos ingleses. Registra o historiador Marcus Rediker, o “grandioso drama do comércio humano”, pois a maioria esmagadora das pessoas trazidas da África para os diversos cantos do mundo, “foram tragadas pelo turbilhão em movimento, surreal, do tráfico”.

A esse quadro somavam-se os anseios das camadas populares por melhores condições de vida, e das camadas médias, que almejavam maior participação política. A junção de tantas circunstâncias favoreceu o surgimento de contestações espalhadas pelo país, sempre esmagadas com rigor pelas forças governistas. As autoridades constituídas interpretavam que a eclosão de revoltas ameaçava a ordem e a unidade territorial do jovem Império. Ensina o historiador Ilmar Rohloff de Mattos que “esses conflitos representavam também o protesto contra a centralização do governo em torno das províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas Gerais”.

As reivindicações populares avolumadas desdobravam-se em contendas espalhadas por diversas regiões do Brasil. Entendia o regente Feijó ser preciso conter “o vulcão da anarquia que ameaçava devorar o império”. Eram tempos complexos, em que a urgência de ações frequentemente mostrava sua face.

No intrincado quadro envolvendo situações econômicas, políticas e sociais, que tanto preocuparam o padre Feijó, a mobilização malê, contudo, não deve ser classificada como mais um movimento daquela época. Mesmo estando inserida no conjunto de dezenas de revoltas escravas tradicionais, ocorridas na Bahia, durante a primeira metade do século XIX, apresentava aspectos particulares. Foi a mais grave, a derradeira e ousada, por ter acontecido no âmago de uma importante cidade do Império: Salvador. Além dessas singularidades, distingue-se das demais pelo envolvimento predominante de africanos e de africanas que professavam a religião muçulmana.

“O sonho da Bahia muçulmana”

A frase do historiador João José Reis aponta intenções ao referir-se especificamente a um movimento conduzido predominantemente por africanos escravos e libertos na Bahia, durante o governo do regente padre Diogo Antonio Feijó. Conflitos semelhantes aconteceram naquela província nas décadas iniciais do século XIX. Porém, o que é entendido por estudiosos como o mais significativo foi o dos Malês, que se espalhou rapidamente por Salvador, no alvorecer do dia 25 de janeiro de 1835. Seus participantes, mesmo que por apenas poucas horas, tornaram-se “senhores das ruas” da cidade.

Malê deriva da expressão imalê, que em iorubá designa negros muçulmanos, que sabiam ler, escrever e falar o árabe, língua desconhecida no Brasil – embora não seja possível precisar o número dos participantes que dominavam tal conhecimento quando a revolta eclodiu. A escrita em árabe, no entendimento da historiadora Luciana da Cruz Brito, ocupa “lugar central na interpretação do levante”. Naquela época, a religião muçulmana, em um país extremamente católico, expandia-se entre os africanos que viviam na Bahia, e seus devotos deveriam ler o Alcorão.

Inúmeros historiadores não afirmam, com precisão, o que os participantes pretendiam se fossem vitoriosos. Admitem que eram motivados por razões heterogêneas. Entre elas, estavam as lutas contra a escravidão (e suas formas de expressão) e contra a imposição da religião católica de Roma, bem diversa daquela que a maioria dos envolvidos professava: a muçulmana.
Entretanto, acredita João José Reis que de “toda a maneira, não foi um levante sem direção, um espasmo social produto do desespero, mas um movimento dirigido à tomada do poder”. Mesmo sem ter detalhes, é certo “que a Bahia malê seria uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos”.

Salvador: uma “capital africana”?

Mercado a céu aberto na Bahia (Fonte: León Pallière/BN Digital)

Documentos informam que a maioria esmagadora dos envolvidos na Revolta dos Malês, que tomaram as ruas e as vielas de Salvador, era constituída por africanos escravos ou livres. A cidade nesse período, segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, chegou a ser comparada a uma “capital africana” devido à presença cotidiana e marcante de africanos. Vale observar que historiadores registram também a presença no movimento, embora em número bastante reduzido, de homens brancos livres, pobres, mulatos, mestiços, pardos e negros forros nascidos no Brasil.

Fontes indicam que, naquela época, a capital da província da Bahia possuía em torno de 65 mil habitantes, dos quais aproximadamente 40% eram cativos. Por outro lado, a maioria não escrava era composta por africanos e seus descendentes (pardos e mulatos). Considera o historiador João José Reis que, somando “os negros e mestiços escravos e livres, os afrodescendentes representavam 78% da população. Os brancos não passavam de 22%. Entre os escravos, a grande maioria (63%) era nascida na África, chegando a 80% na região dos engenhos de açúcar localizados no Recôncavo”.

Negros libertos, nas sociedades hierarquizadas escravistas, eram vistos com desconfiança e pouca aceitação. Assim, enquanto minoria, necessitavam conservar boas relações com os “brancos”. Para tal respeitavam e obedeciam as práticas codificadas de subserviência. Também se filiavam às ordens religiosas induzindo o pensamento à aceitação dos valores cristãos. Eram caminhos que utilizavam para se distanciarem de conflitos que envolvessem a justiça ou as autoridades policiais.

Porém, tais estratégias nem sempre garantiam algum tipo de ascensão social e muito menos asseguravam a posse de bens que, muito eventualmente, tivessem adquirido. Diante de tal situação, os “libertos” na Bahia oitocentista procuravam deixar testamentos objetivando garantir, no post-mortem, que seus recursos fossem repassados para herdeiros, legítimos ou não. Para a historiadora Mary Karash, o escravo, mesmo “liberto, carregava pesado estigma, que o marcava até a morte, principalmente se fosse africano”. Tal estigma era uma forma de recordá-los de que não seriam cidadãos plenos como os “brancos”. Os africanos libertos eram sempre associados com a escravidão e, além disso, vistos como estrangeiros. Tinham “direitos políticos e de cidadania mais restritos que os libertos nascidos no Brasil”, informa a historiadora Maria Inês Côrtes de Oliveira.

Contudo, sob a perspectiva do Estado, e a imprensa da época em que a Revolta dos Malês aconteceu reforçava a ideia, existia um paradoxo quanto à presença dos africanos livres ou libertos nas diversas províncias do Brasil imperial. Se percebidos pelas classes dominantes sob a crença da periculosidade e sob a sombra do medo que inspiravam, eram indesejáveis. Mas tolerados, se observados quanto à importância econômica e à força de trabalho escravo, não remunerado, que reconhecidamente possuíam.

As autoridades imperiais chegaram inclusive a admitir que essa fatia da população precisava de um “código de leis específico, mais rígido, que correspondesse à necessidade de segurança desta sociedade, que acreditava estar ameaçada por estes negros ‘estrangeiros’”, segundo registra a historiadora Luciana da Cruz Brito.

Para o professor Rainer Sousa, a Revolta dos Malês pode ser entendida “como um conflito que deflagrou oposição contra duas práticas comuns herdadas do sistema colonial português: a escravidão e a intolerância religiosa”. A esses dois aspectos João José Reis acrescenta a questão da etnia.

“Viva nagô, morra branco”- a questão da etnia

População da Costa da Mina, de etnia nagô (Fonte: Augusto Stahl/Brasiliana Fotográfica/BN)

Quanto a etnia, a grande maioria dos envolvidos na Revolta dos Malês, incluindo a liderança do movimento, tinha origem iorubana (grupo étnico-linguístico africano), sendo majoritariamente nagôs.

A superioridade numérica dos nagôs acabou transformando a língua que falavam naquela utilizada frequentemente pelos negros escravos e libertos, das diferentes etnias. Segundo o sociólogo José Reginaldo Prandi, era a “língua geral de comunicação dos africanos de todas as origens que viviam em Salvador pelo menos no século XIX”.

Aliás, falar a mesma língua, para a historiadora Maria Inês Cortês de Oliveira, representou um papel importante “na reconstrução das identidades de ‘nação’ e na realização das alianças interétnicas na Bahia”. Observa, ainda, que nem todos os grupos que “podiam se comunicar fundiram-se ou aliaram-se. Todavia, os que o fizeram tiveram na língua um dos fatores mais importantes do processo de identificação, que possibilitava a ultrapassagem dos limites de adscrição étnica e permitia que as ‘nações’ africanas na Bahia se reconstruíssem sobre novas bases”.

Muçulmano de etnia mandinga (Fonte: P. David Boilat/ As imagens. Olhares sobre o tráfico e a escravidão/UFPR)

Minoritariamente, também participaram do movimento: os haussas (originários principalmente do norte da Nigéria e do sudeste do Niger) e outros grupos étnicos provenientes de Angola ou da Costa do Ouro (região atualmente pertencente a Gana). Para o historiador João José Reis, em termos quantitativos, justifica-se a “participação discreta daqueles haussas”, que já haviam protagonizados movimentos como o que ocorrera em fevereiro de 1814 em Salvador. Apesar de muitos serem adeptos do Islã, entendiam que tal condição não era suficiente a ponto de justificar uma união com os nagôs com os quais tinham diferenças, possivelmente não esquecidas, desde a África. Além disso, a maioria tinha “a essa altura deposto suas armas”.

Então, mesmo sendo entendido como um movimento multiétnico, foi liderado por africanos nagôs. Segundo historiadores, o grito ouvido, como protesto no desenrolar dos fatos, “viva nagô, morra branco”, conduz a tal entendimento.

Religião e escravidão - Documentos

Naquela época, e é importante registrar, não existiam bem definidas uma identidade étnica e outra religiosa entre os africanos que viviam no Brasil. Porém, particularmente na Bahia, o islamismo estava mais difundido em determinadas etnias, como a dos os nagôs e a dos haussas.

Analisando o movimento, sobre o prisma religioso e investigando documentos oficiais da época, há indícios de que os envolvidos na Revolta dos Malês buscavam proteção da sua crença no dia a dia e, por isso, se insurgiram. A presença da questão religiosa apresenta-se por meio do nome da revolta. Afinal, malê era como os negros mulçumanos eram chamados na Bahia.

Entretanto, nos incontáveis interrogatórios, assentados em extensa documentação oficial que reúne manuscritos e impressos referentes à “insurreição de escravos malês” custodiados pela Fundação Pedro Calmon (Salvador), faltam pistas que caracterizem o movimento posicionado contra o cristianismo, contra os cultos de outras etnias africanas ou objetivando o estabelecimento da religião muçulmana.

Diversos pesquisadores, examinando registros governamentais frequentemente produzidos sob tortura ou sob pressão policial, consideram inexistir tal indicativo. Observam que os prisioneiros nas inquirições não transitaram pelo viés de “guerra religiosa”. A participação de africanos não muçulmanos é mais um dado que pode conduzir à interpretação de que a revolta não era estritamente religiosa.

Contudo, tal linha de pesquisa não é unânime. Nesse sentido, outra opinião consta no primeiro texto de que se tem notícia sobre a Revolta dos Malês, publicado, no ano de 1907, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, pelo religioso Etienne Ignace. Citado pela historiadora Priscilla Leal Mello, o padre Ignace demarca o seu entendimento dos fatos quando registra que o movimento não possuía "tão somente um caráter político e social; não era um esforço para a conquista da liberdade; revisita, ao contrário, um caráter sobremaneira religioso: era, em uma palavra, uma guerra santa”.

Além da questão da etnia e da religiosidade, as consultas nos mais de seis mil documentos processuais judiciais e policiais indicam que os envolvidos em declarações tratam de outro importante aspecto. Referem-se à situação degradante em que viviam, ao sentimento negativo dirigido a inúmeros “brancos e mestiços”, ao fato de não terem direito algum e ao desejo de não serem mais escravos. Novamente vale ressaltar que a maioria dos implicados, na qual se incluiu preponderantemente a liderança malê, era de indivíduos escravizados. Então, apesar de, nas inúmeras consultas realizadas na documentação produzida pelas autoridades policiais não ficarem definidas as exatas intenções dos participantes, é possível deduzir, diante da situação do cativeiro, que intencionavam por meio do movimento alcançar a liberdade.

Nessa direção, o historiador João José Reis considera que a revolta “teria tido também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por escravos e porque a linguagem antissenhorial dos presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes, acionando uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava”.

Os “escravos de ganho”

Escravo de ganho (Fonte: Frederico Guilherme Briggs/BN Digital)

Observando a condição social e de trabalho dos envolvidos no movimento dos malês, percebe-se que a maior parte era composta por africanos escravizados, embora existissem também libertos. Dos libertos, uns poucos detinham melhor condição financeira, diferenciando-se dos demais. Mas, como um todo, pertenciam ao que historiadores nomeiam como “os miseráveis da sociedade”.

No compasso do crescimento das cidades, especialmente as litorâneas, no alvorecer do século XIX avolumou-se o mercado de serviços urbanos em que os escravos também eram ocupados. Isso significava mais uma forma de espoliação das suas capacidades e aptidões. Cultivavam gêneros e atuavam como pequenos mercadores; podiam ser pescadores, marinheiros ou estivadores. Prestavam serviços públicos e produziam algum artesanato. Recebiam pagamento em espécie, destinado ao senhor, no todo ou na maior parte. Eram os chamados “escravos de ganho” (ou “negros de ganho”) que, de algum modo, mesmo tratados sem nenhuma distinção, possuíam a inegável liberdade de circular por Salvador, onde tinham forte presença. Essa oportunidade de movimentação favorecia contatos possibilitando o surgimento de revoltas. Após acumularem poucos rendimentos, que os senhores eventualmente lhes deixavam, alguns conseguiam comprar suas alforrias. Mas, quando isso acontecia, era o resultado de longos anos de trabalho duro e extenuante.

Os “escravos de ganho” espalharam-se pelas freguesias da cidade morando ou não nas casas senhoriais e, muitas vezes, sob o mesmo teto. Naquela época, a capital da província da Bahia se caracterizava pela ausência de áreas residenciais privativas a determinados segmentos sociais. O fato de muitos dos que compunham a população de africanos e africanas residirem no mesmo espaço ou próximos estabeleceu um conjunto de relações de vizinhança e de solidariedade. Tal proximidade favoreceu o surgimento de laços que, vez ou outra, se desdobraram em ações de cooperação ou até mesmo de discórdia.

Loja de barbeiros 1821 (Fonte: Jean Baptiste Debret/ In Debret e o Brasil: obra completa, 2009)

O entra e sai de conhecidos ou de “parentes de nação” (uma espécie de família simbólica, já que a de origem fora desfeita pelo tráfico intercontinental de escravos) acontecia diuturnamente nessas moradias. Tal movimentação, que antes quase não chamava a atenção, passou a ser observada e acompanhada, com especial cautela, pelas autoridades – especialmente após a Revolta dos Malês.

Num dia santo ou festivo. Os fatos

Em geral, segundo o historiador Sérgio Figueiredo Ferretti, as revoltas de escravos que ocorreram na Bahia na primeira metade do século XIX eram arquitetadas, intencionalmente, para acontecer “num dia santo importante, como o Natal, a festa do Bonfim, a procissão de Corpus Christi ou as festas juninas, em que a cidade estivesse relativamente deserta e a população concentrada no lugar principal da festa. (...) Os levantes na cidade visavam conseguir armas e munições, atacar guarnições policiais menores com o mesmo fim e libertar outros escravos presos ou em depósito, e contar com o apoio de escravos urbanos. Visavam igualmente apoderar-se de embarcações para retornar à África ou mesmo matar os brancos para dominar o local, aclamando chefes negros”.

O movimento malê foi desenhado para eclodir na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, domingo, quando na região do Bonfim, em Salvador, aconteceria uma festa católica celebrando Nossa Senhora da Guia. Romperia quando os escravos urbanos saíssem para cumprir tarefas cotidianas como buscar água nos chafarizes. Segundo registros escritos em árabe, encontrados e traduzidos, o planejamento incluía provocar, em diversos pontos da cidade, incêndios simultâneos que distraíssem a atenção das autoridades.

Contudo havia tensões e conflitos entre a população africana escravizada ou liberta. Documentos policiais da época informam casos de disputas entre parceiros e vizinhos. Delações, aos senhores ou às autoridades governamentais, aconteciam. Os autos da devassa (produzidos no decorrer do processo judicial) registram que na véspera do dia 25 informações sob a trama foram reveladas a um juiz de paz, acredita-se que por escravas libertas. A partir daí, precipitaram-se os acontecimentos.

O presidente da província, Francisco de Sousa Martins, alertado, tomou providências mobilizando as forças policiais, que iniciaram buscas. Guardas circularam pela cidade. Suspeitaram de uma casa onde, efetivamente, se reuniam participantes da revolta. Ao invadirem a moradia, foram surpreendidos com a imediata ação daqueles que, atacados, reagiram portando facas, facões e algumas armas de fogo. Apesar das informações e dos dados oriundos dos setores que comandaram a repressão não serem coesos, fontes avaliam que desse enfrentamento inicial resultaram mortos e feridos.

Relatos esclarecem que o caos se espalhou por Salvador. A Câmara Municipal foi atacada. Os revoltosos, segundo o historiador Ilmar Rohloff de Mattos, “liderados pelos muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio, Pai Inácio, dentre outros” pretendiam tomar a prisão existente no subsolo daquele prédio público. Intencionavam libertar “um dos líderes malês mais estimados, o idoso Pacifico Licutan, cujo nome muçulmano era Bilal”, segundo registra o historiador João José Reis. Tal investida não alcançou o sucesso pretendido; os carcereiros e a guarda do palácio do governo (localizado na proximidade) responderam com violência.

O movimento seguiu em frente. Alastrou-se pelas ruas da cidade e seus participantes prosseguiram enfrentando as forças policiais. Com a manhã já avançada, outros envolvidos rumaram no sentido da região da Água de Meninos (bairro histórico de Salvador, localizado entre o Pilar e São Joaquim, dentro da Baía de Todos os Santos), onde havia um quartel de cavalaria. Combates renhidos e decisivos aconteceram, com a vitória pendendo para o corpo oficial – mais numeroso, bem armado, e que contara com o reforço de outras guarnições.

As tropas igualmente contiveram ataques de alguns integrantes da revolta, que fugiram pelo Recôncavo Baiano (região geograficamente situada em torno da Baía de Todos os Santos), onde se localizava parte importante dos engenhos que utilizavam a mão de obra escrava. Acabaram massacrados pelas fileiras da Guarda Nacional, pela polícia e por civis armados que estavam apavorados ante a possibilidade do sucesso da revolta negra.

A repressão, as prisões e as sentenças

A partir daí, a repressão avançou vasculhando moradias. O resultado foi a apreensão de vestimentas (túnicas brancas) e escritos (fragmentos de orações). Foram recolhidos objetos como tábuas para ensinar a ler e a escrever em árabe, pequenas bolsas feitas em couro contendo frases do Alcorão e usadas como proteção contra “todos os perigos”. Tais descobertas incriminaram seus proprietários, provocando detenções de centenas de escravos e libertos no Forte de São Marcelo (conhecido como Forte do Mar). Os aprisionados foram conduzidos posteriormente aos tribunais onde aconteceram os julgamentos e as sentenças.

Amuleto (Fonte: João José Reis, 180 anos da Revolta dos Malês)

Cálculos efetivados por estudiosos do tema, apoiados em documentos oficiais, estimam que estiveram envolvidos no conflito de 600 até 1500 africanos. Contudo, é necessário pontuar que do total dos africanos muçulmanos que viviam na Bahia naquela época, nem todos participaram do movimento. Entretanto, as autoridades constituídas poucas vezes fizeram tal distinção.

Interligada à complexidade da situação, destaca-se a questão da língua árabe, geralmente desconhecida pelas autoridades estabelecidas e pela população. Nos autos do processo, muitos dos suspeitos e dos aprisionados, possivelmente tentando escapar das acusações e das penas que aconteceriam (e aconteceram), ou desejando ocultar os planos da revolta, negavam saber ler e escrever em árabe. Assim, os inquisidores tinham enormes dificuldades na tradução dos papéis ou dos depoimentos que seriam provas de incriminação dos envolvidos. A transcrição do que era declarado pelos envolvidos, incontáveis vezes, podia ser uma aproximação do que fora realmente dito; ou do que o escrivão policial entendera ou pensara que entendera.

Nota árabe (Fonte: João José Reis, 180 anos da Revolta dos Malês)

Frequentemente, sem prova definitiva, inúmeros foram presos, julgados e sentenciados. Muitos foram mortos e outros deportados. Torturas também foram aplicadas, como condenação, especialmente aos libertos, já que os cativos permaneciam com as suas atribuições na sociedade hierarquizada e escravista daquela época. Apesar de massacrada e da breve duração, a Revolta dos Malês demonstrou às autoridades e às elites o potencial de contestação e rebelião que envolvia a manutenção do regime escravocrata. Essa ameaça esteve sempre presente durante todo o Período Regencial e se estendeu pelo governo pessoal de D. Pedro II.

Breve duração e longa repercussão

Se a breve duração do movimento malê, ocorrido em poucas horas do dia 25 de janeiro de 1835, é um lado da questão, o outro envolve a repercussão que ganhou adiante. A presença de escravos nas cidades do Império (e na Corte) sempre inquietou a população “branca”. Ainda mais quando notícias de insurreições negras (reais ou imaginárias) chegavam de pontos do Império, como essa revolta urbana de 1835. Outra imensa preocupação era a difusão do “haitianismo”, movimento iniciado em 1790 por escravos e que culminou com a independência do Haiti, em 1804.

Medos, receios e intranquilidades passeavam pelos quatro cantos do Império brasileiro, passando a compor o dia a dia das “pessoas de bem”, observa o historiador Ilmar Rohloff de Mattos. Exemplo disso pode ser notado pelo edital da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1831, determinando que: "os escravos que forem encontrados fazendo desordens serão conduzidos ao calabouço, dando-se imediatamente parte aos senhores para estes mandarem dar nos motores cem açoites, conforme a lei, e, se recusarem a fazê-lo, sofrerão a multa de 30$000 e 8 dias de pena, bem como os senhores que deixarem de castigá-los”.

No caso da Revolta dos Malês, que deixou a cidade de Salvador em pânico por várias horas, após o movimento ter sido sufocado pelas autoridades responsáveis os participantes que sobreviveram foram aprisionados. Porém, mesmo depois das sentenças, envolvendo penas como açoite e degredo, significativos desdobramentos prosseguiram ao longo do tempo.
Segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, espalhou-se um sentimento antiescravista pela Bahia. Viver naquela província “após 1835 tornou-se uma tarefa ainda mais difícil para os africanos”. Isso porque eles foram considerados responsáveis pelo movimento malê e vistos pelas autoridades imperiais constituídas “como inimigos da nação, da civilidade e da segurança”.

Até mesmo para os proprietários de escravos e de terras, interessados na manutenção do sistema vigente, inúmeros receios ocuparam seus pensamentos, resultando em leis que objetivaram responder à demanda de controle e de repressão da população africana.

O clima antiafricano, após o movimento malê, alcançou tamanha gravidade que, no dia 30 de abril de 1835, um deputado apresentou à Assembleia Legislativa da província da Bahia uma proposta sugerindo que “o governo provincial expulsasse para fora do Império, com maior brevidade possível, e ainda à custa da Fazenda Pública, os africanos forros de um e outro sexo, que se fizerem suspeitos de promover a insurreição de escravos”. É importante observar que, ainda segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, a intenção de “deportar os africanos, naquele momento, não viria associada a nenhuma intenção de abolição da escravidão, sobretudo imediata ou incondicional”.

As apreensões e os temores de que outros levantes dessa natureza se alastrassem pelas províncias fez com que as autoridades tomassem medidas e atitudes que impediram outras revoltas.

Na capital do Império, por exemplo, africanos libertos oriundos da Bahia não eram bem-vindos e estavam proibidos de desembarcar na cidade; sobretudo após a revolta de 1835.

Aqueles que já viviam na região volta e meia sofriam perseguições por parte da força policial. A grande preocupação era quanto à proliferação de reuniões que poderiam se desdobrar em outras tantas revoltas. Nesse contexto, onde a tensão e a desconfiança dialogavam latentes, domicílios eram invadidos, festas e encontros religiosos proibidos “quase sempre pressentidos com horror pelos senhores”, segundo a historiadora Mary C. Karasch.

Diante dos levantes de escravos ocorridos no Império na primeira metade do século XIX, como o malê, não se pode concordar, segundo o historiador Sérgio Figueiredo Ferretti, “com os defensores do mito da democracia racial” e nem com a ideia da “benignidade da escravidão brasileira”.

Conclusões

Mãos letradas: saberes e liberdade enquanto projeto

Ainda sem resposta, uma questão se apresenta: como esses escravos envolvidos no movimento malê chegaram a Salvador, já que pesquisas indicam que, segundo o livro sagrado do Alcorão, não era permitida a escravidão de um muçulmano. Historiadores, a partir desse preceito, se interrogam, indo além: de que forma iniciados na religião foram negociados como cativos para o Brasil, por exemplo? Teorias consideram que talvez não fossem escravos na região de onde vieram. Teriam, sim, sido capturados por portugueses ou por espanhóis que traficavam, comercializando esse tipo de “mercadoria”.

De todo o modo, estudiosos que se aprofundam nos fatos que envolveram, por exemplo, a Revolta dos Malês, entendem que é simplificar em demasia observar que a África trouxe para as terras americanas apenas, e tão somente, a força de trabalho escravo que abasteceu as propriedades agrícolas, além das incontáveis tarefas no mundo urbano.

Segundo a historiadora Priscilla Leal Mello, aquele continente trouxe “mãos letradas na linguagem poética e abstrata do árabe. Não trouxe apenar saberes orais. Trouxe saberes escritos em uma língua de sofisticado alfabeto que, na época, a quase ninguém era cabível decifrar. Não trouxe conhecimento apenas de conteúdo prático. (...) Não trouxe mentes vazias que precisassem aprender na América escravista, e somente aqui, o sentido de liberdade. Trouxe esse sentimento de liberdade (e de escravidão) não somente de sua própria experiência, mas também de suas reflexões mentais mais profundas”.

Bem mais importante do que analisar o fato desses africanos serem letrados é entender e refletir sobre o uso político que fizeram com tal aprendizado ao se rebelarem, como fizeram os malês. Quando esses protagonistas, reunidos no interior de casebres espalhados pelas ruas e vielas de Salvador, planejaram ações que aconteceriam em janeiro de 1835, saíram da sombra. Anônimos, pretenderam deixar claro as suas trajetórias.

Lutaram desejando preservar, nas palavras da historiadora Maria Inês Cortes de Oliveira, as “raízes longínquas de suas culturas. Sua vitória pode ser comprovada por tudo aquilo que conseguiram fazer chegar até nós. A Bahia, melhor do que ninguém, é testemunha desse fato”.

Reflexões

Histórias recontadas e caminhos cruzados

“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. O provérbio africano que transita pela memória coletiva da história afro-brasileira, retoma a trajetória de duas personagens interligadas por laços familiares. De forma particular e singular, ambas marcaram a presença das populações negras, mesmo que no caso de uma delas não se tenha a certeza da existência. Trata-se de Luisa Mahin, que teria vindo para o Brasil como escrava e a quem se atribui um importante papel no movimento malê. Diversos pesquisadores avaliam ser uma figura idealizada, um arquétipo construído, hoje reverenciado como símbolo da luta da mulher negra por diversos setores da sociedade brasileira.

Luiza Mahin entrou para a História por meio de relatos do seu filho, reconhecido como um dos precursores do movimento abolicionista no Brasil, o poeta Luiz Gama, nascido em Salvador no dia 21 de junho de 1830. Mesmo sem contar com documentação ou registros materiais que possam comprovar efetivamente a sua existência, de acordo com a historiadora Aline Najara da Silva Gonçalves, Gama revelou o “nome da mãe em uma carta autobiográfica enviada em 1880 ao amigo Lucio de Mendonça e, antes disso, dedicou-lhe os versos do poema Minha Mãe, escrito em 1861”. Alguns estudiosos alegam que Luiza teria sido uma criação literária do escritor. De todo o modo, ficção ou não, alimentou o desenvolvimento do mito.

No documento, escrito para Mendonça dois anos antes da sua morte em São Paulo, informa ser filho natural “de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. (...) Dava-se ao comércio – era quitandeira muito laboriosa e, mais de uma vez, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos que não tiveram efeito”. Conduzida pelos caminhos da fantasia ou da realidade por Luiz Gama, Luiza Mahin alcança a cena principal do movimento dos malês.

Evidentemente não é possível, para os que não viveram os mesmos tempos, resgatar com precisão os pensamentos mais profundos daqueles protagonistas diante da escravidão. A violência e o terror impostos aos africanos foram cruciais na própria formação da economia atlântica e de seus múltiplos sistemas de trabalho, no decorrer do tempo em que a escravidão vigorou mundo afora.

Segundo palavras dos historiadores João José Reis e Elciene Azevedo, as histórias de liberdade vivenciadas nos tempos em que existiu o cativeiro “pertencem ao território das sombras“. Mas não para sempre. Afinal o sempre é todo o dia?

Resgatar tantas memórias, trazendo-as para a cena principal, é considerar que a resistência fez parte do cotidiano dos envolvidos e que a concepção de liberdade, para eles, não representava uma idealização afastada do tangível: era um projeto e um objetivo a serem alcançados. E o legado permanecerá vivo toda a vez que alguém escrever sobre o assunto, buscando despertar o interesse e a reflexão sobre a Revolta dos Malês.

Jeanne Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O Mochileiro do Futuro.

Bibliografia:

Artigos e publicações

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FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Revoltas de Escravos na Bahia em início do século XIX. Disponível em http://www.pppg.ufma.br/cadernosdepesquisa/uploads/files/Artigo%205(5).pdf. Acesso em 30/05/2016.
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Livros
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KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: Uma História Humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
REIS, João José et al. O Alufá Rufino. Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822- c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
REIS, João José e AZEVEDO, Elciene (org.). Escravidão e Suas Sombras. Salvador: EDUFBA, 2012.

Sites
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